“Saí do matadouro depois de matar uma vaca em final de gestação”

Foto: Unparalleled Suffering

Sidnei Ribeiro, de 38 anos, trabalhou quase quatro anos abatendo bovinos na Região Metropolitana de Curitiba, até que um dia deixou o local sem dizer nada e nunca mais retornou. “Saí do matadouro depois de matar uma vaca em final de gestação”, revela.

Em entrevista à VEGAZETA, Ribeiro começa explicando que no seu caso nunca houve “tal coisa como se acostumar com o ato de matar animais”, mas sim que “matar deixa de ser visto como matar” – o que acontece quando você fica imerso em uma realidade em que evita racionalizar as implicações de suas ações ou até mesmo cria uma “realidade” para si no matadouro.

Questionado sobre a percepção que os consumidores têm de quem trabalha abatendo animais, ele diz: “Não via e não vejo meus ex-companheiros de trabalho como pessoas ruins. Se eles são ruins, por que ninguém diz o mesmo sobre quem paga pela morte desses animais? Não existe carne no açougue sem atordoar, degolar, sangrar, matar…”

E continua: “Então eu fazia e muitos outros continuam fazendo o que quem lucra com isso e quem come paga pra que seja feito. É o que é. Tem crueldade nisso? Sim, hoje acho cruel tirar a vida de um animal no matadouro, mas não concordo quando dizem que quem trabalha lá é um sujeito cruel, porque quem julga não conhece as condições dessas pessoas, como se acostumaram com isso, que impacto isso tem em suas vidas e como elas foram parar lá. Claro que não posso falar por todos, mas posso falar pelos que conheci.”

Ribeiro mudou do interior de São Paulo para Curitiba quando surgiu a oportunidade de trabalhar em um matadouro em 2016. Um mês depois de acompanhar um funcionário com mais de dez anos de experiência, começou a abater bovinos. “Quem diz que não é estranho no começo? Sempre é. Mas você acostuma porque pensa na sua sobrevivência, da sua família, e evita pensar muito sobre o próprio trabalho, tanto lá dentro quanto lá fora. É o costume que se desenvolve…”

Perto de completar quatro anos atuando como abatedor, Sidnei sempre pedia que alguém o substituísse quando chegava vaca prenha no matadouro. Abater bezerro também era algo que ele se recusava a fazer, mas como sempre havia algum colega disposto a uma troca, não costumava ter problemas.

A chegada de uma vaca em final de gestação

No entanto, houve uma mudança administrativa no matadouro e as substituições ou trocas passaram a ser proibidas. Em dezembro de 2020, faltando duas semanas para o Natal, enviaram para Ribeiro uma vaca em final de gestação, recém-descartada de uma fazenda leiteira.

“Perguntei se não era ilegal fazer aquilo porque parecia que ela iria parir a qualquer momento. Ninguém disse nada, como se eu estivesse fazendo um comentário que não precisasse de resposta.”

A “técnica” desenvolvida em anos, e que o permitia fazer o trabalho o mais “rápido possível”, sem pensar muito na situação ou “observar demais” o animal, não teve qualquer efeito naquela circunstância.

“A vaca parecia bem cansada, exausta mesmo, e atravessou bem devagar o box. Foi preciso empurrar, não porque ela resistiu em entrar, mas porque parecia bem fragilizada. Tive a impressão de que era um animal sofrido, doente, não falo nem de coisa física, do corpo…”

Sidnei Ribeiro lembrou de histórias de funcionários dizendo que vacas prenhas ficam mais sensíveis e sentem bem mais do que as outras, que pressentem com mais facilidade quando algo de ruim vai acontecer.

“Não sei se vaca sente tristeza, eu acho que sim, e o olhar dela pra mim era um olhar triste, meio baixo, e eu olhava pra ela e sabia que havia outra vida ali dentro.”

Não tentou fugir nem recuar

Sidnei conta que ela não tentou fugir nem recuou, mas isso não “ajudou em nada”. “Digo que foi pior porque normalmente quando um animal não tem uma má reação em relação a você é porque ele tá confiando. Agora imagine que eu nunca tinha abatido uma vaca prenha, seria a minha primeira, e era como se aquele animal diante de mim, por mais que tivesse um olhar desolador, talvez acreditasse que eu não lhe faria mal.”

Ribeiro não esquece o momento em que olhou pela última vez nos olhos da vaca e ela fez o mesmo antes de abaixar a cabeça para não mirar mais seus olhos. “Tentei clarear a mente, e não podia atrasar o tempo de abate pra não atrapalhar o cronograma. Só olhei pro ponto de concussão na cabeça da vaca e, sem olhar de novo, disparei”, narra.

“Ouvi um gemido que nunca tinha ouvido antes, ou talvez tivesse ouvido e não lembrasse. Mas acho sim, que era diferente de tudo que ouvi ali.” A vaca ficou com a boca um pouco aberta, e o olhar sem rumo, caída de lado, escorada em uma das paredes do box.

“’Eu a matei, eu a matei’, só pensei nisso, porque sempre acho que o animal morre antes da sangria, porque a vida já se perde dentro do box, quando a gente arrebenta o cérebro deles com o dardo cativo”, comenta.

Com pessoal reduzido e muito trabalho no matadouro no final de 2016, Sidnei ainda teve de atuar na sangria da vaca, a quem deu o nome, mas sem dizer a ninguém, de “Última”. “Senti um desgosto muito grande, e eu causei aquilo. Só pensava nisso.”

Mais um disparo 

Cerca de seis minutos depois, alguém removeu o feto do útero e o encarregado ordenou que ele também recebesse um disparo de dardo cativo, que era uma exigência técnica. “Eu ainda estava impactado com o que fiz com a vaca.”

Ribeiro hesitou diante da ordem, porque achou que não fosse sério, que o estavam provocando. Mas não, e acabou atirando sem prestar atenção em quem atirava. “Eu não queria mesmo ver. Me senti como se estivesse matando uma criança, um bebê. Acho que foi a coisa mais horrível que fiz na minha vida, e vou ter que conviver com isso pra sempre. Nunca tinha matado uma vaca prenha e ainda matei a vida que ela gerou. Tenho certeza de que ouvi uma inflada nos pulmões e um respiro vindo dele. Eram vidas, cara…”

Sidnei Ribeiro garante que se sentiu anestesiado e não conseguia processar tudo que aconteceu naquele dia. “Foi o pior fim de ano da minha vida, e fiquei me perguntando depois porque aceitei fazer o que fiz.” Ele deixou a pistola de dardo cativo no chão e foi embora sem responder nada, sem dizer nada.

“Não lembro nem o que disseram naquele dia enquanto eu saía. Me senti como se estivesse dopado de alguma coisa.” Nunca mais retornou ao matadouro. “Você acha que lembro pouco disso? Eu estaria mentindo se falasse que sim…”

Saiba Mais

O artigo 7º da Portaria nº 365, de 16 de julho de 2021, publicado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), atualizou normas técnicas federais de manejo pré-abate e de abate humanitário. Com isso, passa a ser permitido em todo o país o abate de vacas em final de gestação também como parte dos protocolos de “bem-estar animal”.

 

Gosta do trabalho da Vegazeta? Colabore realizando uma doação de qualquer valor clicando no botão abaixo: 




Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *