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Não faz sentido dizer que a caça não prejudica ninguém

Uma reflexão a partir de "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes

Em “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, quando o duque exalta a caça, Sancho Pança diz que é expor-se a um perigo por um prazer que não parece ser nenhum prazer:

“Porque consiste em matar um animal que não cometeu delito algum” (p. 304, 2012). Então o duque, como se ignorasse o que é dito por Sancho, comenta: “Em suma, é um exercício que se pode fazer sem prejudicar ninguém […]” (p. 305, 2012).

Assim, a consideração que Sancho atribui à vítima animal é negada, por conveniência, pelo duque. O que foi observado por Cervantes na construção da justificativa do duque reproduz realidade que ainda persiste séculos depois.

Há uma contraditória ideia de que prejudicar outros animais é “não prejudicar ninguém”, porque o animal não humano não deve ser pensado como alguém, e sequer sendo “ninguém”, no sentido de pouca significância, não pode ser prejudicado; o que é uma visceral e arbitrária marginalização do animal.

Isso pode até mesmo ir além da caça, se pensarmos nos inúmeros exemplos em que a morte não humana é ignorada em contextos diversos, e como se sequer fosse morte. Assim nega-se ao animal não apenas o reconhecimento do peso da morte, mas da própria morte.

Esse exemplo permite lembrar também que durante muito tempo existiram e ainda existem círculos em que a caça não é pensada como “matar”, mas como “colher”, um eufemismo que rejeita o reconhecimento do assassinato do animal e visa, por absurda analogia e dissimulação, aproximar essa ação do ato de “arrancar as coisas da terra”.

Também podemos ir além da boa intenção de Sancho em “Dom Quixote” e problematizar a questão do delito. Se o animal que morre é morto somente porque tentava sobreviver, isso pode ser considerado um delito? O que é um delito para esse animal?

Referência

CERVANTES S., M.  Dom Quixote. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 1328 p.

Leia também “Caça é assassinato“,  “Em ‘Pequeno Grande Homem’, protagonista decide se matar após testemunhar crueldade da caça“, “Caça aos javalis, um engodo a favor da crueldade” e “Sobre o termo ‘colheita’, usado para ‘suavizar’ a barbárie da caça“.

 

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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