Tem sangue no leite

Assiste bezerro se afogando dentro da garrafa de leite. Tão fundo quanto sua vontade que é sua ausência (Ilustração: Marlaina Mortati)

Assiste bezerro se afogando dentro da garrafa de leite. Tão fundo quanto sua vontade que é sua ausência. “Parece tipo de desespero animal, não sei, algo assim.” Não tem vaca, mas tem um pouco de sangue no fundo. “Será que tem mãe?” Pergunta por perguntar – acha que não.

“Ou seria o leite a mãe? Mas por que ela o afogaria?” Pensar desse jeito dá menos trabalho. Por que complicar? Tem fome e começa a beber o leite do copo – do corpo. Percebe que o bezerro tem boca selada, aberta, selada. É melhor acreditar que está aberta.

Acha estranho ele lá dentro, sem beber o leite da garrafa. “O que tem de errado?” Toma mais um gole, observa bem. Bezerro não consegue tocar o leite. Existe uma película estranha que envolve seu corpo. Não permite entrar nada pela boca.

Está junto do leite e não está. “Por quê?” Pergunta sem muito interesse em saber. Toma outro gole e vê que o bezerro afunda mais. É assim. Boca selada, aberta, nada entra na criatura bovina. Vê cicatriz, marca no couro, no “coxão duro” – “Não dê leite”.

Lê de novo – “Não dê leite” – mesmo. Bezerro afunda mais. “Parece algo normal, deve ser normal. Por que não?” Toma mais um pouco. Vontade não diminui. Bezerro vai encolhendo e descendo. Encosta as patas traseiras no sangue no fundo da garrafa.

Quer mais leite. Fecha os olhos. Agora sem bezerro e sem sangue. Sente gostinho de couro, algo raspando pela garganta. Tosse um pouco e o hálito muda. Tem gosto de carne. “Negativo. Não como carne.”

Abre os olhos e a geladeira, pega outra garrafa e chacoalha. Também tem bezerro, e maior que o outro – quase encostando a cabeça na tampa, que estufa. Olhos estão saltados e as patas arranham o vidro com força. “Acho que não tem jeito.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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