Bois não sonham em virar bife

Desviava o olhar, mas o boi persistia com seus olhos escuros (Foto: iStock)

Era 1951 na Água do Cedro. Tertuliano tinha chegado há pouco tempo do interior de São Paulo para atuar como motorista de caminhão; buscar mantimentos para três casas de secos e molhados. Era “meio aéreo”, como diziam, e sempre que tinha tempo livre, sentava na cabine do caminhão, apoiado sobre o painel escrevendo em um caderninho.

Logo fizeram proposta para que transportasse boiada até o matadouro na saída para Nova Aliança do Ivaí. A missão era buscar animais na Fazenda Alto Remanso em Alto Paraná. Precisando de dinheiro, Tertuliano não hesitou. Pela manhã, um homem gritou: “A boiada tá no jeito! Pronta pro abate!”

Tertuliano desceu a velha rampa de madeira e assistiu a boiada subindo. Hesitação. Resistência. Um empacou no limiar da rampa. Quatro peões reuniram forças para que o boi, que tinha apelido de Teimoso, aceitasse o malquisto destino. Antes de desaparecer carroceria adentro, observou Tertuliano. Desviava o olhar, mas o boi persistia com seus olhos escuros.

— Você leva esses que depois a gente acerta — disse o administrador da fazenda.
— Sim, senhor.
— Quer que alguém te acompanhe?
— Não. Já tá tudo certo do lado de lá.
— Então tá bom. Pode ir.

Subiu na cabine e deu outra olhadela nos bichos. Silêncio desconfortável. O incomodava saber que os animais não reagiam mais. Sem barulho. Não odiavam os seres humanos, nem Deus, se houvesse um para eles.

— Que diacho de vida é essa? Sabe que vai morrer e vai aceitando assim? Bois não sonham em virar bife.

Durante o percurso, parou o caminhão, circulou pela carroceria e ouviu respiração ruidosa de um deles.

— Será que tá com medo?

Quis subir na carroceria pra ver melhor a boiada. Feito. Lá em cima, ninguém movia os cascos, somente olhos em sua direção.

— Por que num chora, num grita, num berra, num odeia? Será que sabem mesmo pra onde vão? Será? Talvez sim, talvez não. Tô é ficando louco, falando com boi. Melhor seguir viagem.

Demora. Estrada estreita de terra. Animais silvestres atravessando carreador e se escondendo na mata. Tertuliano parou o caminhão e observou a pouco mais de 300 metros um barracão onde funcionava o matadouro. Não gostou do que viu. Hora da despedida. Ou não.

Desistiu da entrega. Seguiu viagem. Parou em um sítio em Graciosa, onde comprou ração e pediu água. Dirigiu até o Porto São José. Chegou depois de dois dias. Em outro sítio, a boiada desceu a rampa sem medo. Deram alguns passos pasto adentro e deitaram sobre a braquiária. Verde, verde, verde. Sol morno. Sem medo.

— Olhe aí, pai! Parece criança.
— E não são? — indagou o velho acendendo um palheiro.

Não perguntou a origem da boiada. Talvez não quisesse saber, ou não tivesse relevância.

— O senhor pode cuidar deles pra mim?
— Deixe, onde come cinco, come até vinte, acho — respondeu sorrindo.
— Tá certo.

Teimoso, que não era mais teimoso, mugiu quando o rapaz virou as costas. Avisou ao pai que era preciso resolver a situação.

— Dá-se um jeito — garantiu o velho.

Na semana seguinte, Tertuliano decidiu retornar a Alto Paraná. Perto de Guairaçá, encontrou galhos na estrada e desceu para movê-los. Emboscada. Sete tiros de carabina. Três homens. No banco do caminhão havia um pequeno saco de estopa, dinheiro que seria entregue como forma de compensação.

Agonizando e deixado para morrer, resfolegou. Novilho atravessou a cerca e se aproximou. Lambeu seus olhos. Tertuliano sorriu e sucumbiu. Sua história real não seria contada. Ganhou fama de ladrão de gado quando o que menos queria era roubar vidas. Até os anos 1980, ainda havia uma cruz onde morreu. Trazia a frase: “Se vive para não ver, não há o que querer.”

Acervo: David Arioch
Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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