Tudo na geladeira vinha de bicho

Arte: Dana Ellyn

Deitado, via os bichos pulando e voando janela afora. Saltavam da geladeira e do fogão. Iam se arrastando, se juntando e ganhando a noite. Não fazia calor nem frio. Não sentia fome. Nem sentia nada.

Assistia a partida no remanso, esfregando mão vez ou outra sobre o topo da cabeça. “Tá tudo bem. Faz mais falta lá fora que aqui dentro. Deixe que vão.” O último mirou a íris por segundos, e correu sem jeito, reaprendendo a controlar movimentos.

Levantou, abriu geladeira, forno e armários. Só curiosidade. Não tinha sobrado nada pra comer. Tudo vinha de bicho. Pegou copo d’água, caminhou até o fundo e percebeu que os galhos da mangueira vizinha caíam sobre o quintal. Não se recordava do quintal.

Alguns passos e sentiu coceirinha na orelha; mexeriqueira deitava galhos. Já estava ali? Talvez, nunca tinha notado. No canto do muro, jabuticabas forravam o chão. Deitou sobre elas e assistiu a lua. Parecia massagem.

“Nunca tinha sentido este cheiro. Diferente.” Engoliu algumas e, vacilando olhos, tentou contar mangas e mexericas que cochilavam do lado de cá. “Todo mundo tem sono, de coisa que vem ou de coisa que vai. Às vezes, é consciência pregando peça pra gente não despertar. Ou desgarrar?” Dormiu sentindo cheiro do cheiro.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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