Você não tem dó do boi?

Foto: L214

Perguntaram sobre a profissão de seu pai em uma atividade em grupo na escola. Respondeu que o trabalho dele é cuidar de boi.

“Então seu pai lida com boi?” “Sim.” No recreio um coleguinha quis saber mais a respeito e ele disse não saber direito como funciona, mas que já ouviu seu pai dizer que tinha acabado de chegar do abatedouro.

“Seu pai trabalha em abatedouro ou passou no abatedouro?” Não soube responder. “Se ele trabalha lá, então ele mata boi, não cuida de boi.” Ficou pensando nisso e à noite perguntou se o pai cuida de boi ou mata boi.

O homem não respondeu e disse que outra hora explicaria direito como funciona o trabalho. A dúvida incomodou mais ainda e ficou triste em reconhecer que talvez seu pai matasse animais.

“Por que matar animais?” Lembrou do pequeno pedaço de bife picado que comeu no almoço. Servido no prato, parecia ter vindo do prato. “Por que nunca pensei nisso antes?” Dizem que é importante comer e que é só comer. Nada mais. “Por quê?”

Noutro dia, o pai evitou a mesma conversa, mas o menino o ouviu falando com a mãe sobre uma mudança de jornada no abatedouro. “Pai, você não tem dó do boi?” Não disse nada, fingiu que não ouviu, afagou a cabeça do menino e saiu.

Mais tarde, no matadouro, quando liberaram mais um boi, o animal entrou manso no box e ele apenas encostou a pistola em sua cabeça. Lembrou do filho perguntando se ele não tem dó do boi – sequência que não contabilizou.

O animal levantou a cabeça, ainda sentindo a pistola contra os pelos do crânio e o observou. Depois abaixou a cabeça, olhando para a frente. “Será que me olhou ou estou viajando?” Parecia não esperar o pior. Não tentava fugir ou recuar – nem movia as patas de lugar.

A palavra “dó” foi associada à traição reforçada pela mansidão. Como se apenas seu corpo estivesse ali, pensou nos bois que deitou para sempre e de quem já não lembrava cor, cheiro ou face. “Essa vida é uma estranha anestesia”, comentou.

“Pai, você não tem dó do boi?” Colocou a pistola sobre o apoio da plataforma e saiu.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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