Animais atacam humanos ou se defendem de humanos?

Uma reflexão a partir do livro “Escute as Feras”, de Nastassja Martin

Escute as Feras”, de Nastassja Martin, é um livro que nos permite pensar as afirmações de que humanos foram atacados por animais. Especialmente na mídia, as situações que envolvem humanos e outros animais são geralmente tratadas como “humanos sendo atacados por animais”, mesmo quando esses animais agem pela autopreservação ou estão no próprio habitat ou onde em relação a eles há uma ausência.

Ainda assim, o animal é referenciado como o outro que ataca e que se apresenta como uma ameaça ao humano. Essa normalização, claro, vem com uma perspectiva da situação que parte do protagonismo humano em relação à vida e ao mundo – portanto um viés antropocêntrico.

Essa verticalização tende a favorecer o mal contra o não humano que vive em seu estado natural. Mas, Martin, influenciada por saberes indígenas, como dos evens siberianos, que vivem no extremo oriente russo, traz um outro olhar ao narrar sua própria experiência:

“Neste dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem.”

Na obra, ela fala em confronto evocando uma compreensão de um contato a ser pensado como horizontal e que envolve estar em um espaço onde sua presença surge como estranheza. “Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça.”

Martin se recusa a definir o urso siberiano como agressor e a si mesma como vítima, refutando uma compreensão moral e hierárquica que caiba no reducionismo antropocêntrico. Afinal, se ela é vítima, por que não pensar o urso como vítima de sua presença?

A mutilação sofrida não é vista pela autora como mera violência, mas como uma troca. Martin diz que o urso levou algo dela e algo dele ficou nela, como resultado desse conflito físico. “[…] o urso foi embora com um pedaço do meu maxilar, que ele guardou no dele […].” O uso das palavras também confronta a lógica antropocêntrica desse contato.

Martin não teria essa compreensão sem que estabelecesse uma relação com a percepção dos evens da relação humana-não humana. No entanto, um problema que pode ser apontado na abordagem de Martin é que ela tenta falar pelo urso, dar uma voz ao urso que não é do urso.

Quando ela diz, por exemplo, que “seus mundos se reviram, seus encaminhamentos usuais se alteram e seus vínculos se tornam indefectíveis”, ao atribuir a mesma compreensão ao urso, ela não deixa de reproduzir a perspectiva antropocêntrica que ela própria se propõe a refutar.

“Existe uma suspensão do movimento uma retenção uma parada um estupor que se apossa das duas feras pegas no encontro arcaico – aquele que não se planeja, aquele que não se evita, aquele do qual não se foge.”

Sobre a geração desse encontro não planejado, não há como refutar, mas como cada um experimentou isso, não podemos concluir pelo urso. Quando ela diz também que “a cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter ocorrido há mil anos”, isso também é problemático porque não sabemos quais fatores influenciaram o urso a estar naquele lugar naquele momento – e podem envolver fatores inexistentes “há mil anos”, como mudanças climáticas e invasão de habitats.

Mas isso, claro, não diminui o quanto o questionamento e a experiência da autora, e que reflete também algo comum a diversas cosmovisões indígenas, nos permite questionar essa percepção hierárquica do animal como o outro que ataca e que por muito tempo foi usada para legitimar o mal contra tantos animais.

E ao pensá-los dessa forma, claro, criou-se um projeto ainda não superado de crescente instrumentalização dos espaços naturais para fins humanos, sem levar em consideração as outras vidas que habitam e que são parte desses espaços, portanto têm direitos em relação a eles porque também compõem uma cadeia indissociável de vidas.

Em “Escute as Feras”, a recusa da antropóloga Nastassja Martin em chamar o evento de “ataque” não é só semântica, mas epistemológica: ela se coloca como parte do ecossistema, não como vítima de uma natureza externa e hostil. Isso ecoa autores como Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro (perspectivismo ameríndio), que questionam a separação ocidental entre natureza e cultura.

Casos como o do animal não humano que ataca um turista em um parque nacional, por exemplo, são sempre contados a partir da mesma narrativa: o humano como sujeito universal, o animal como ameaça a ser controlada.

Essa é uma percepção reducionista e especista. Com base na sabedoria de comunidades tradicionais, essas interações não planejadas nem desejadas também são vistas como falhas de comunicação, não como meros ataques.

A própria Nastassja Martin, em várias passagens do livro, evoca a questão da comunicação. Ela relaciona isso com o que o urso deixou nela – sendo a mutilação e as cicatrizes uma expressão de um conflito em comunicar que podemos inferir, mas não podemos afirmar.

Também é preciso ressaltar que povos originários como os evens, com quem Martin conviveu, entendem as interações entre humanos e não humanos como interações entre pessoas e sem a noção de “domínio” ou “propriedade” sobre o espaço no molde ocidental que também foi exportado para o mundo, legitimando também a instrumentalização dos espaços naturais.

Isso, claro, levou à ampliação do mal contra tantas formas de vida que passaram a ser vistas como obstáculos ao “progresso” e ao lucro – sendo o “progresso”, nessa leitura, um projeto que serve ao lucro e não realmente ao desenvolvimento humano.

Observações

Em “Escute as Feras”, o urso não é um “monstro” ou “agressor”, mas um ser com agência, cujas ações podem ser lidas como parte de uma relação complexa com o ambiente.

A contribuição do livro está em desestabilizar a narrativa ocidental que coloca o humano no centro e reduz o animal a uma ameaça ou recurso. Martin nos convida a repensar essas relações a partir de uma “ética do encontro, onde humanos e não humanos coexistem em um mundo compartilhado – muitas vezes de maneira conflituosa, mas nunca unilateral.

No entanto, como toda obra antropológica que lida com perspectivas não ocidentais, há o risco de romantização ou projeção de intenções humanas sobre os não humanos. Ainda assim, o livro é um convite a “ouvir as feras – não como monstros (na comum banalização especista), mas como seres com seus próprios modos de existir e se relacionar.

Essa reflexão é urgente em um mundo onde a crise ecológica e a extinção em massa são consequências diretas da visão de que a natureza existe para ser dominada. Portanto a grande ferocidade não está no urso que reage em seu território.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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