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Quando dizemos que humanos não devem ser tratados como animais, por que não pensamos também nos animais?

Uma reflexão a partir de “Arquipélago Gulag”, de Aleksandr Soljenítsyn

No livro “Arquipélago Gulag”, de Aleksandr Soljenítsyn, vencedor do Nobel de Literatura de 1970, ele relata, em Tiurzak, no capítulo 12, com base na própria experiência e observação, que durante o stalinismo prisioneiros eram transportados como animais para os campos de trabalho forçado.

Sua observação evoca o tratamento dado ao gado a caminho do abate, numa observação que visa ressaltar um tratamento que experimentado por humanos é inaceitável. Há outros exemplos semelhantes na literatura não ficcional e ficcional.

Acredito que todos nós podemos pensar em exemplos em que lemos, ouvimos ou assistimos alguém classificar como terrível uma situação em que humanos são tratados como animais. Portanto ser tratado como animal é ser tratado como não deveria – é um tratamento que comumente também traz o sentido de cruel.

O problema dessa afirmação é que, se considera inaceitável tratar um humano como um animal, e sendo esse animal normalmente um fim no uso humano, ela é paradoxal, e porque incorre em uma observação especista da realidade.

Quero dizer, se não queremos que humanos sejam tratados como animais, e sendo o animal “o outro”, nesse distanciamento em relação ao humano, ao mesmo tempo em que não admitimos que um humano seja tratado como outro animal, reconhecemos no próprio tratamento um mal.

Por outro lado, não manifestamos reprovação sobre outros serem tratados dessa forma, e porque os outros podem ser tratados de uma forma que só seria reconhecida como inaceitável se não fossem sobre eles e sim sobre humanos.

Assim não reprovar o que vive o outro é consequência do lugar imposto a ele que leva a uma banalização em que a reprovação só viria se excepcional fosse tratá-lo dessa forma. Mas a normalização anula o sentido negativo do que vive o animal? A experiência deixa de ser ruim para ele porque só a reconhecemos como ruim se há entre nós quem experimenta o que ele experimenta?

A maioria dos humanos quando fala em um humano sendo tratado como um animal realiza um raciocínio que exclui o animal não humano da profundidade desse pensar. O mais intrigante disso é que a própria afirmação de tratar alguém como animal não reconhece como positiva a forma como o animal é tratado à medida em que avalia a experiência humana de passar por algo análogo.

É como se fosse impossível reconhecer o mal disso enquanto somente experiência não humana, como se sem a experiência humana pudesse ser, por contradição, não um mal, mesmo na afirmação do mal pela experiência humana e que não deixa de postular que “ser tratado como um animal é um mal”. Mas o que é ser tratado como um animal para o animal? Se pensamos naqueles que são criados como fins no arbitrário interesse humano.

Em “ser tratado como um animal”, a grande contradição está nos limites impostos a esse reconhecimento de que é ruim viver isso; porque nessa observação não costuma haver a defesa de que outros animais não devem vivê-lo. É como dizer: “Sim, é ruim, mas não há problema se o valor que atribuímos à vida desses animais é menos sobre eles do que o que queremos deles, que também é tirar deles.”

Logo é como dizer que o tratamento ruim cabe ao não humano (se isso é um reflexo do que normalizamos e do que se associa aos nossos interesses decorrentes de sua exploração) e o bom tratamento cabe ao humano.

Podemos perceber a partir de muitos exemplos que a afirmação de “ser tratado como um animal” não é sobre como “um animal (outro) deve ser tratado”, mas sobre o que deve ser reprovado quando experimentado por um humano.

Ademais, nunca deixa de evocar a contradição que existe nessa observação se, numa consideração mais inclusiva, não especista, é possível apontar para a normalização dos males das nossas relações com outros animais. Portanto se ruim é ser tratado como um animal, ruim também é tratar um animal como um animal por tudo que decorre de uma perspectiva especista de pensá-lo e, por consequência, determiná-lo.

Sugestão 

Sugiro a leitura de “Kupfer-Koberwitz: ‘Enquanto o homem matar animais, ele matará seres humanos‘”, em que a experiência de sofrimento de um pacifista alemão em um campo de concentração nazista reforçou sua contrariedade a como os animais não humanos são tratados.

Leia também “No século 18, naturalista condenou a tirania humana contra os animais“, “Animais não são nossos escravos” “Thoreau: ‘É parte do destino da raça humana deixar de comer animais‘”, “Escritor judeu Isaac Bashevis Singer criou personagem que compara abate de animais com o Holocausto” e “Hitler e Stálin perseguiram vegetarianos“.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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