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Como o especismo é cruel

Uma reflexão a partir do livro “Enquanto agonizo”, de William Faulkner

No romance “Enquanto agonizo”, de William Faulkner, Vardaman, numa ação cruel, desconta nos animais a sua fúria pela morte da mãe. Não podendo bater no médico Peabody, a quem ele culpa pela morte da mãe, Vardaman bate nos cavalos de Peabody.

Faulkner mostra o que o ser humano é capaz de fazer com os mais vulneráveis quando considera mais fácil fazer com eles o que não pode fazer com um humano. Assim eles sofrem em duplicidade, a partir do que é ordinário e do que não é, do que é sobre eles e do que não é.

Faulkner não romantiza a realidade dos animais, nem quando apresenta a primeira descrição da situação não humana na história, e que já não é bonita, porque há mulas na chuva, enlameadas, e uma delas escorrega enquanto a carga de madeira da carroça pesa como chumbo.

Depois a cena de Vardaman espancando os cavalos em parelha de Peabody é incômoda e porque existe para ser:

“Eles me olham enquanto eu subo, e começam a recuar aos saltos, rolando os olhos, resfolegando, puxando as rédeas que os prendem. Eu bato. Posso ouvir o pau batendo; posso ver o pau atingir-lhes as cabeças, as rédeas, falhando às vezes, enquanto eles recuam e tentam soltar-se, mas eu estou contente. […] O pau quebra-se; eles corcoveiam e resfolegam, suas patas batem surdas no chão; surdas, porque vai chover e o ar está vazio para receber chuva. Mas o pedaço de pau que me restou ainda é comprido. Corro em volta, enquanto eles resfolegam e saltam e puxam as rédeas, e eu bato” (p. 28).

É impossível não sentir empatia por esses animais. Faulkner desperta um lamento pelos cavalos, tirando, nesse momento, o lugar de lamento de Vardaman que reage ao sofrimento gerando sofrimento. Quando Vardaman diz que os cavalos começam a recuar antes de serem agredidos, Faulkner permite duas conclusões: Vardaman já impôs sofrimento aos cavalos ou intuíam sobre sua crueldade. Essa percepção não humana também remete à capacidade não humana de perceber os humanos.

Ademais, a crueldade contra os cavalos incomoda mais ainda porque é uma realização para quem bate, uma realização que não seria possível se tais animais já não fossem pensados como se existissem para sentir as consequências do domínio humano. O estar “contente” de Vardaman é cruel porque é uma anulação dos animais mesmo diante da reação antagônica, e por autopreservação, deles.

Outra observação é que ao atingir os cavalos, Vardaman age como se não atingisse indivíduos, mas as propriedades de Peabody, assim como se lesasse ele, não os animais, e mesmo que tais animais expressem uma grande diversidade de emoções e sentimentos durante o ato de crueldade. Logo, para ele, bater nos cavalos é bater no médico. É um ato paradoxal em si, assim como muitas das conveniências que envolvem o mal e a normalização do especismo.

Mas a atitude de Vardaman, que é um personagem de outro tempo, considerando que a história se passa em 1928, e quando o uso de tração animal era mais comum, não é diferente das violências ainda testemunhadas hoje contra cavalos e outros animais usados como tração ou para outros interesses humanos.

É o lugar imposto aos animais que favorece a violência, porque não havendo imposição, não há espaço para a permissividade. Exemplo disso é que em muitos atos de violência contra animais, há quem sequer veja isso como um erro ou uma crueldade, mas até mesmo como um direito, ou uma ação de um mal para um bem – o animal não está agindo em conformidade com o interesse humano para o qual deve viver. Essas são as consequências do tipo de relação que estabelecemos com os animais com base no uso deles.

Mais tarde, Samson lamenta pelas mulas e pelo trajeto que elas teriam de enfrentar: “Eu tinha pena era das pobres mulas de ossos à mostra” (p. 49).

Outro exemplo que serve a uma reflexão sobre o especismo está no sofrimento da vaca que é tratado como de menor importância por Dewey Dell. Sem sentir o sofrimento do animal, ela, que perdeu a mãe, o julga, por comparação, como pouco significativo. Portanto o julgamento é baseado no fato da vaca ser uma vaca, de seu sofrimento ter outro motivo (que é também humano – já que vem da sua condição como leiteira), e sob a perspectiva do lugar dela nas relações humanas, que também é de uso:

“A vaca vem atrás de nós gemendo. […] A vaca me empurra, gemendo. ‘Você tem de esperar. O que você tem aí dentro não é nada em comparação com o que eu tenho, embora você também seja mulher.’ […] Ela me acompanha, gemendo. […] A vaca sopra em minhas ancas e costas – um hálito quente, doce, estertoroso, queixoso” (p. 32).

Podemos notar como Faulkner explora as contradições das relações humanas com outros animais, porque ao mesmo tempo que Dewey reconhece a vaca como mulher, e sendo ela própria mulher, havendo nisso uma percepção que entra em conflito com o especismo, ela não consegue deixar de estabelecer uma separação em que a vaca ainda é vista como alguém a quem não cabe igual consideração de interesses. Prova disso está no adiamento de uma solução para o sofrimento da vaca e que não compete com o seu sofrimento.

Há vários momentos em que a vaca recorre a Dewey para que seu sofrimento seja aplacado – seguindo-a, cercando-a. Ela descreve a vaca como um animal carinhoso, e nisso Dewey expressa uma observação empática sobre o animal, reforçando esse conflito de olhar para o animal sem, ainda assim, considerá-lo como um sujeito total, ainda que percebido como indivíduo.

E mesmo nessa percepção de indivíduo, ela é um indivíduo que não pode viver desconectado do interesse humano. A súplica da vaca também é comovente porque externa sua dependência para recuperar o seu bem-estar. Ademais, é o leite dentro dela que gera essa dor, portanto, o leite, como fim no interesse humano, também é expressão do sofrimento do animal.

Saiba Mais

Faulkner já declarou que gostaria de ter escrito “Moby-Dick”, livro sobre o qual também já publicamos no artigo “A crítica ao consumo de carne na literatura de Herman Melville“.

Referência

FAULKNER, W. Enquanto agonizo.  2. ed. Rio de Janeiro: Expansão Editorial, 1978.

Leia também “Animais não são nossos escravos“, “Um relato que fez consumidores deixarem de comer carne“, “Em Ulysses, abate de animais é chamado de massacre dos inocentes” e Kafka: “Preciso de alimentação vegetariana e praticamente de mais nada”.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

2 respostas

  1. Excelente resenha de obra de um grande autor que explora o universo dos demais animais num contexto de sofrimento sob o jugo desumano. Parabéns pela iniciativa de abordagem magistral do website que deveria ter uma audiência muito maior e participativa.

  2. O ser humano que faz esta prática de crueldade animal pensa que é o dono da verdade. Não sabe o que é respeito. Agindo assim não respeita nem a si próprio. Essa ganância não deixa parar para pensar que os animais tem sentimento, sentem dor, e tem o mesmo direito a vida. Nós que somos veganos vivemos o dia a dia com a mente perturbada. Não consigo entender tanto egoísmo, e tanta maudade. Nossos anjos animais só quer o reconhecimento de uma liberdade que sempre tiveram este direito.

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