
No romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, há duas passagens narradas por Belonísia sobre o que ela percebeu com a aproximação de Tobias, mais um trabalhador explorado na fazenda Água Negra.
Nas duas passagens, ela faz referência ao gibão de Tobias e ao cheiro do couro como se fosse ainda o cheiro da pele do próprio animal morto. “Cheirava a couro que ainda curtia, seus olhos cercavam Domingas, mas logo se desviavam em minha direção.”
Depois, Belonísia lembra novamente do cheiro, mas com mais detalhes: “O cheiro do gibão de Tobias era uma mistura de suor e couro que ainda estava sendo curtido, como se não estivesse pronto para ser usado. Quase conseguia ver as moscas procurando restos de carne sobre seu corpo.”
Belonísia não nega o animal no couro, mesmo na representação de pedaços tornados utilitários e presos ao corpo humano. Se o corpo do animal não humano ali não existe, há um outro corpo (humano) sobre o qual as moscas, nesse exercício imaginativo, podem transitar – porque é ele que abriga o que ficou de outro corpo e que já não é um corpo (“somente” pele reduzida a couro).
A associação entre o couro e “a procura por carne” não deixa o sentido de morte ser apagado. Couro é inevitavelmente morte, mesmo que não a causa da morte, já que costuma ser resultante da morte do animal com fim no consumo de carne.
Como observa Belonísia, o gibão de couro ainda evoca vestígios de carne que poderiam atrair moscas. Simbolicamente, é perceptível que do couro não se pode subtrair o que é essencialmente morte.
A referência a “restos de carne” permite pensar no couro como pele que protegia a carne viva. Não há mais um corpo e, ainda assim, podemos pensar nesse corpo que já não existe – já que o couro depende precedentemente de um corpo.
Podemos pensar na carne que não vemos, ideá-la como se estivesse ali; vestígios que atrairiam moscas. A potência está na própria consciência de Belonísia que associa e imagina com base no incômodo gerado pelo cheiro.
Não saber se as moscas realmente encontrariam alguma coisa nos deixa uma inconclusão pelo que é inevitavelmente relação. “Não é possível que com base nesse cheiro, não haja vestígios de carne”, pode-se concluir.
Tudo isso se constitui pelo cheiro em relação com o fim de um animal. O cheiro é indutivo de tudo que costuma ser ignorado e até negado. O cheiro remete a uma ausência que não pode ser plenamente uma ausência.
Afinal, antes havia carne, muita carne “grudada” à pele tão comumente reduzida a couro. Talvez moscas não encontrassem nada, mas o próprio relato de Belonísia que nos permite pensar a relação entre couro e carne é potente como observação, porque é realista.
O contato desse subproduto da violência com um corpo que sofre a violência do trabalho (Tobias) em um regime de exploração e impossibilidade de direito ou posse – ninguém pode ser dono nem da própria casa construída na Água Negra, a não ser a família Peixoto e depois Salomão (o novo fazendeiro) – permite o reconhecimento de um encontro de explorações e violências.
Tobias tem a “posse” do couro do animal (que por meio do abate é violentamente privado de seu corpo não humano) ao mesmo tempo em que seu “couro” serve aos propósitos desiguais da fazenda. Isso evidencia ciclos de exploração – com ele também tentando se impor sobre Belonísia que reage à sua maneira.
Observações
O cheiro de “couro sendo curtido” e os “restos de carne” sublinham a materialidade irredutível do objeto. O gibão não é um artefato neutro, mas um vestígio corpóreo que carrega a violência de sua origem:
- A pele como fronteira: O couro era a membrana entre o mundo exterior e a carne viva; agora, é um resto deslocado que ainda evoca o corpo ausente.
- A morte inacabada: O processo de curtimento incompleto metaforiza a impossibilidade de apagar a história do animal. A carne imaginada atrairia moscas no imaginário de Belonísia porque a morte permanece ativa no gibão – e em contato com um corpo que em breve, e embora como resultado de um processo diferente de violência, também será um “não corpo” (determinado pela morte de Tobias).
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