Em “O Caçador de Ratos”, humano também é rato

Na adaptação de Wes Anderson do conto de Roald Dahl, o rato também assume a forma do humano que exige sua morte

O curta “O Caçador de Ratos”, de Wes Anderson, uma adaptação do conto de Roald Dahl, permite discutir animalidade, especismo e consumo.

O caçador de ratos é um homem como um rato, com andar como de um rato, com dentes como os de um rato e com olhos como os de um rato. O brilho amarelo nos seus olhos e o seu farejar também são como de um rato.

“Nesse trabalho é preciso ser mais inteligente que o rato, o que não é pouca coisa”, diz o caçador de ratos. “Você quase tem que ser como um rato”, diz o repórter. “É isso. Você entendeu.”

No curta, o rato que vemos é o que não vemos, o rato que não vemos é o que vemos. Wes Anderson explora visualmente essa contradição, já que até determinado momento do filme o rato não é visível, e quando torna-se visível, sem ser realmente rato, o rato ganha a voz do caçador de ratos, na presunção do silenciamento.

O corpo é de um rato que não é rato, mas esse corpo que mimetiza o rato é tomado por uma voz que não é sua. É a voz que fala por um corpo que não é seu corpo, e sim um corpo a ser destruído. É uma voz que domina e anula o rato.

Depois o rato assume a forma de Claud, o humano que exige sua morte. A voz humana desaparece e ficam as expressões de um rato num corpo que não é de rato. E assim é morto um rato, não com as mãos, mas com os dentes.

A cena gera repulsa. O caçador é chamado de nojento, porque para seus espectadores o que incomoda não é a morte, e sim como é consumada a morte. Um deles diz que “está fechando os olhos para abrir depois”.

O caçador de ratos interpela seus críticos a partir de um discurso sobre o consumo, sobre o sangue de rato que os fabricantes de chocolate usam na produção de alcaçuz.

“Mas é isso. Você já comeu várias vezes. Rosquinhas e barrinhas de alcaçuz feitas com sangue de rato.” E reagem: “Não queremos ouvir mais nada.”

A mesma crítica pode ser estendida a muitos produtos de origem animal, ingredientes ou “aceitáveis acidentes”, e à relativização da morte animal com base no “método”, que revela a faceta do incômodo humano na desconsideração do não humano.

Então o caçador, antes chamado, é hostilizado e vai embora em silêncio, “com passos de rato”.

O curta que traz no elenco Ralph Fiennes, Rupert Friend e Richard Ayoade está disponível na Netflix.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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