Globo não deveria promover um alto consumo de carne

É coerente abordar o desmatamento como um sério problema, mas favorecê-lo?

Não seria justo dizer que isso tem ocorrido somente na TV Globo, afinal ainda persiste uma crença dominante de que o consumo de proteínas deve ser o consumo baseado em animais, mas é notório que a Globo tem usado alguns de seus programas para promover um alto consumo de carne.

Programas como “Mais Você” e “É de Casa” são dois exemplos disso. O primeiro tem buscado com mais frequência estimular nos espectadores o interesse por outros tipos de preparos de carne. Só falta a Ana Maria Braga dizer que o objetivo é fazer com que os espectadores comam mais carne, que comprem mais carne. Claro que embora não se diga isso, a mensagem está implícita no que é estimulado.

O segundo, que vai ao ar aos sábados, ganhou um bloco dedicado a promover o churrasco e também preparos mais diversificados de carne – incluindo hambúrgueres. Há também uma clara romantização desse consumo, pela maneira como a carne é exaltada. É notório que isso é favorável à indústria da carne e suas grandes marcas que engrossam a receita da TV Globo.

Afinal, se os programas promovem o consumo de carne é porque um dos objetivos é realmente fazer com que as pessoas comam mais carne. Do contrário, não se daria tanto enfoque nisso; nem haveria um bloco dedicado a isso em um programa. Além disso, tudo é explorado com um viés estritamente positivo.

Essas iniciativas exploram o poder de sugestão, já que quem come carne, quanto mais recebe informações que estimulam esse consumo, mais tende a querê-la. O problema é que considerando tudo que representa hoje o consumo de carne, mesmo que a Globo tenha uma motivação econômica para isso, esse estímulo entra em conflito com questões cada vez mais evidentes e que não podem ser mais ignoradas.

Em outros programas, como telejornais, ou mesmo no “Mais Você” ou no “Domingão com Huck”, há constantes apontamentos sobre o desmatamento no Brasil, sobre a crise climática, mas nada disso é abordado de forma a gerar uma preocupação sobre a atividade agropecuária, sobre a indústria da carne e sobre o consumo de produtos de origem animal que agravam esses problemas.

Tudo isso é abordado com a mesma abstração de sempre, que leva a pensar em autoridades, políticos e práticas em que se crê que a mudança depende somente de outros. Nisso a mídia também tem sua responsabilidade, se no ocultamento de informações de interesse público, ela é omissa ou faz um recorte que seja conveniente aos seus interesses.

Isso também evoca o paradoxo midiático que envolve lucro e bem comum, que surge quando, por exemplo, uma emissora chama atenção para problemas que não se dispõe a combater se ameaçam reduzir sua receita. Portanto, no conflito entre o econômico e o bem comum, uma das facetas mais reveladoras da ética humana consiste naquela em que o bem comum é negligenciado ou relativizado porque não gera lucro, tornando menor uma preocupação que tudo indica que o impacto que a justifica em algum momento não poderá ser compensado pelo econômico.

Já tem se falado e não de hoje que podemos chegar a um ponto irreversível – e o chamado ponto irreversível é aquele em que nenhum poder econômico poderá mais transformar a realidade de forma a frear suas graves consequências ambientais.

Claro que haver mais informações disponíveis sobre essa realidade fora da grande mídia, ou dos meios oficiais, assim como o conhecimento de que há cada vez mais pessoas questionando seus hábitos de consumo, também pode levar a uma reação como essa, em que se busca estimular o consumo de carne e de outros produtos de origem animal. E mesmo que não seja especificamente o caso, o momento é de refletir sobre a responsabilidade do que é visibilizado para muitos e como é visibilizado.

Também creio que, mesmo entre aqueles que promovem na TV o consumo de carne e outros produtos de origem animal, há pessoas que são céticas quanto ao que é dito sobre as consequências desse tipo e produção e consumo – embora o econômico seja também um fortalecedor do ceticismo, já que quando as pessoas se beneficiam economicamente ao promover algo, elas tendem a ter uma predisposição mais favorável em relação a quem elas reconhecem beneficiá-los. Portanto, sendo também um dilema ético, o que é mais importante?

Sem dúvida, também é inegável que os programas que uso como exemplo oferecem o que a emissora também pode julgar que os espectadores querem que seja oferecido, mas isso não inviabiliza a conclusão de que emissoras de TV também podem induzir interesses e favorecer interpretações que lhes são mais convenientes (não que o espectador seja passivo) – se há uma romantização e um viés estritamente positivo desse consumo, sem intenção de dar margem ao contraditório.

Ademais, a Globo, por ser a empresa televisiva de maior público no país, veicular conteúdo tão favorável a esse consumo, e que raramente ou pouco abre espaço para alternativas, não ajuda a melhorar a realidade ambiental.

Assim há também uma questão de responsabilidade a ser considerada, principalmente porque ainda vivemos em um tempo em que, mesmo que mudanças estejam ocorrendo, muitas pessoas não associam, por exemplo, o consumo de carne com os problemas ambientais apontados. Enfim, não apenas incentivar o consumo de carne, mas fazê-lo de forma tão enaltecedora, é compatível com as preocupações de nosso tempo?

Observação

Não é novidade também que um alto consumo de carne tem sido cada vez mais associado a problemas de saúde.

Leia também “É um erro esperar que problemas ambientais sejam resolvidos pelo governo e pela indústria“, “Lula deveria seguir o exemplo do primeiro-ministro da Índia e parar de comer carne” e “É coerente defender o meio ambiente e comer carne?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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