Não imagino que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tenha conhecimento do papel que a agropecuária tem nas mudanças climáticas e no desmatamento no Brasil. Se os animais não são uma preocupação para ele, quando reduzidos a bens de consumo, então ele poderia pelo menos considerar o impacto ambiental ao incentivar o aumento do consumo de carne.
Mesmo que seja impossível não reconhecer as contradições que um líder político tem de enfrentar, e que, sem dúvida, requer também pragmatismo, isso não impede um político de adotar uma postura que esteja mais alinhada com questões que ele diz considerar importantes ou mesmo prioritárias.
A Índia, por exemplo, tem como primeiro-ministro Narendra Modi, do Partido do Povo Indiano, que segue uma dieta vegetariana estrita e com quem Lula tem um bom relacionamento – com os dois, segundo ele, “alinhados no combate às injustiças”. O próprio partido também promove o vegetarianismo. Não se pode dizer que Modi também não lide com contradições, já que a Índia é o país mais populoso do mundo.
Acredito que, apesar das diferenças culturais entre Brasil e Índia, se Lula tem uma identificação com pautas que dependem também de considerar os males da pecuária, por que ele não deixa de comer carne? Isso não depende de contar com a aprovação da maioria no Congresso e ainda envia uma mensagem do quanto ele leva a sério a questão ambiental.
Infelizmente, tenho encontrado declarações confusas e conflitantes. Durante o Fórum Empresarial Bolívia-Brasil, realizado em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, Lula declarou que “reza todos os dias para que até os indianos voltem a comer carne”. Como incentivar uma maior produção e exportação de carne, e esperando que até mesmo muitas pessoas que não comem carne por motivos éticos e religiosos voltem a comê-la, contribui com a agenda ambiental do Brasil?
Parece incompatível com o que Lula diz defender fazer uma declaração em que se prioriza o econômico sobre o ambiental. Exportações de carne brasileira hoje também significam gerar lucro para uma minoria enquanto se deixa o custo ambiental para uma maioria. Os biomas brasileiros já não foram castigados o suficiente pela agropecuária?
O boicote que a carne brasileira tem sofrido lá fora deveria também chamar atenção para a importância de reduzir sua dependência da carne. Um retrocesso também é associar o aumento do consumo de carne com o progresso. Adianta favorecer e promover um maior consumo de carne se isso terá um impacto negativo maior e que chegará ainda mais rápido para aqueles em situação de vulnerabilidade? Mesmo quem não dá a mínima para os animais tem motivos para se preocupar, a não ser que seja um negacionista. Mas mesmo negacionistas terão de lidar com as consequências de suas crenças.
O governo também deveria parar de associar carne com uma melhor vida, com qualidade de vida, e sim investir em políticas públicas que futuramente serão mais compensatórias também para aqueles que hoje se iludem com a crença dos benefícios do acesso à carne. Não estamos nos anos 1990 e não é de hoje que o Brasil tem recebido inúmeros sinais de que deveria parar de supervalorizar a agropecuária e a indústria da carne.
Quando se pensa no boicote de outros países à carne brasileira, independentemente de qual seja a motivação deles, a reação mais comum é ficar somente na defensiva em vez de fazer também uma observação em outra direção – por que não valorizar outros tipos de produção? Se há uma demanda crescente por proteína, por que continuar supervalorizando o que é de origem animal?
Isso leva a uma conclusão de que o Brasil produz carne demais e, quando surge um imprevisto, não tem para quem vender. Também podemos analisar isso sob o aspecto da justiça social, já que a carne que nem todos os brasileiros têm condições de pagar para consumir é vendida fora do país, e convenientemente porque pode-se obter um lucro maior com sua exportação do que com seu comércio interno. Logo em que ponto isso beneficia esse cidadão brasileiro?
É contraditório um país que tem observado com tanta gravidade o desmatamento e as emissões de carbono acreditar que o caminho é continuar estimulando um consumo cada vez mais elevado de carne. Lula deveria dar mais atenção ao desenvolvimento de produções, sistemas e tecnologias que são alternativas à carne.
Por que não falar em planos de subsídios para proteínas não animais? Que demandam menos uso de terra e água e também geram bem menos emissões de carbono. Por que não discutir como tornar isso mais acessível? Por que não promover uma alimentação à base de vegetais e seus benefícios? Por que não possibilitar meios para que todos tenham uma alimentação de qualidade livre do uso de animais? E quando falo em promover isso, digo fazê-lo de forma justa, não de forma minúscula, e que sequer chegue ao conhecimento da maioria dos brasileiros em comparação com o apoio dado à agropecuária.
O discurso do governo brasileiro, quando promove a carne, parece deslocado, parece não ser um discurso de 2024. A discussão deveria ser sobre o que fazer para mudar essa realidade de dependência da agropecuária, não sobre como promover ainda mais a agropecuária. Afinal, isso também é dar mais poder a quem está na contramão de uma consciência mais compatível com o futuro.
Leia também “É coerente defender o meio ambiente e comer carne?“, “Faz sentido ser ambientalista e defender a caça para consumo?” e “Em 1813, poeta Percy Shelley alertou sobre impacto ambiental da carne“.