Por que ignorar como opressão o ato de comer animais?

Uma reflexão a partir do livro “Atos Humanos”, de Han Kang

Foto: Unparalleled Suffering

No romance” Atos Humanos”, em que Han Kang aborda com muita sensibilidade a opressão de uma ditadura que durou 35 anos na Coreia do Sul, e muitos foram reduzidos a “corpos matáveis”, como no “Massacre de Gwangju”, há uma passagem em que Eunsuk Kim diz que não gosta de carne – sendo a carne resultante de uma categoria tão normalizada de “corpo matável”.

O ato de comer animais a incomoda porque ela é incapaz de ignorar o animal na carne. “Não suportava o momento em que a carne era grelhada sobre a chapa”, descreve a narradora. Quando o “suco da carne”, que evoca o sangue, aparecia, ela desviava a cabeça. “Na hora de assar o peixe com a cabeça, fechava os olhos.”

Para Eunsuk, o animal é impossivelmente uma ausência. Por isso, consumi-lo como parte de uma negação não se sustentava. O animal está sempre presente, mesmo na normalização de sua invisibilidade, na negação de que matá-lo é parte de um tipo de opressão quase universal.

“Quando, ao esquentar a frigideira, as pupilas congeladas começavam a ficar molhadas, e um líquido esbranquiçado começava a escorrer da boca aberta do peixe, fazendo que parecesse que ia dizer algo, ela virava o rosto.”

A potência do incômodo vem das associações feitas pela consciência de Eunsuk. Presumir a expressão do peixe como “se fosse dizer algo” pode ser chamado de “antropomorfismo”, mas sendo um “antropomorfismo”, não é do tipo que comumente favorece o humano em detrimento do não humano.

É do tipo que atinge a consciência humana por um efeito reverso de dissociação. A consciência não favorece a dissimulação. Ela joga contra a dissimulação para evitar a neutralização desse impacto como experiência para o peixe. É como se essa consciência prevalecesse sobre qualquer outro interesse que Eunsuk antes tivesse ou pudesse ter.

Há nisso um jogo de resistências, um inerente conflito, porque há uma consciência antagonizando um ato de consumo – um peixe disponível para ser consumido, mas que sua disponibilidade só é possível por uma arbitrariedade.

Isso é o que culmina na percepção de Eunsuk de um peixe “parecendo dizer algo”. E claro, ainda que não se diga o quê, impossível é ignorar que é uma ideação de reprovação por autopreservação. Afinal, como poderia o peixe não rejeitar esse fim se é o mal indissociável do seu próprio fim?

O peixe “não fala”, não em termos humanos, não como linguagem pensada como humana, mas se Eunsuk imagina um peixe “parecendo dizer algo”, isso só é sobre o peixe “parecendo dizer algo” porque há uma associação simbólica; por causa da percepção que ela tem de um peixe como vida com interesses próprios – e que não é vida em conformidade com o fim no ser humano.

Eunsuk não consegue não ver animais no que é comido. Na forma de um pedaço, e mesmo descaracterizado, o animal continua ali, como uma parte não viva. Ela não consegue participar da comum dissimulação em que mesmo que se diga que ali há um animal, o animal é pensado como o animal na “inconsideração humana”.

Ou seja, o animal como se sua instrumentalização fosse uma inerência, não o animal como o “próprio do animal” – já que reconhecer o animal como “seu próprio” depende da rejeição ao que é feito dele como fim no interesse humano, e que surge antagonizando o interesse do próprio animal.

A perspectiva de Eunsuk é destacável porque sua alimentação, como ato de resistência, é uma negação de que a condição de vítima é uma condição estritamente humana ou, por conveniência, seletiva.

Sua percepção, que é marginal em um contexto de violência contra seres humanos que lutam para se libertar da opressão do Estado, reflete também o quanto sequer é pensado como violência o que ocorre com os animais nas relações de consumo.

A consciência de Eunsuk é um “corpo estranho” num sistema que depende da invisibilidade das vítimas. E seu incômodo é radical porque recusa a banalização do mal.

Observações

Ao atribuir ao peixe a expressão “como se fosse dizer algo”, Eunsuk pratica um “antropomorfismo ético”. Não se trata de projetar humanidade no animal, mas de reconhecer nele uma subjetividade irredutível.

Eunsuk desestabiliza o antropocentrismo ao evidenciar que o interesse do peixe (também simbólico do consumo de animais) entra em conflito com o interesse humano.

A alimentação de Eunsuk também é uma reação à arbitrariedade do poder: Quem define quais corpos são “matáveis”? Ditaduras (humanos) ou humanos (animais não humanos)?

A partir de “Atos Humanos”, podemos refletir também sobre o paradoxo da seletividade moral: deve uma sociedade chocada com a violência estatal contra humanos ser indiferente à violência sistêmica contra animais? Eunsuk personifica essa contradição. Sua sensibilidade marginal é um alerta ético: a opressão não se limita ao humano.

Personagens vegetarianas têm sido uma constante nas obras de Han Kang, vencedora do Nobel de Literatura de 2024. Basta lembrarmos também de seu romance homônimo “A Vegetariana”.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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