Três obras sobre a vida de Franz Kafka publicadas no Brasil, como “Kafka”, de Gérard-Georges Lemaire, de 2006; “Franz Kafka – Diários”, de 2021; e “Kafka – Os Anos de Discernimento”, de Reiner Stach, de 2024, trazem referências sobre a abstenção de Kafka do consumo de animais.
Embora já tenhamos publicado a respeito há alguns anos no artigo “Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka”, a validade de trazer essas referências está no endosso que essas obras dão ao citarem uma mudança que teve um grande impacto na vida de Kafka; sendo algo que ele fazia questão de ressaltar em seus diários e cartas.
Começando por “Kafka”, de 2006, Lemaire afirma que Kafka era um vegetariano convicto (2006, p. 158). “Nenhuma refeição me será mais estimulante que esta”, afirma Kafka em carta de 21 de novembro de 1912 enviada à sua noiva Felice Bauer, que ele conheceu na casa de seu amigo Max Brod, responsável por preservar um importante material que mais tarde serviria para estudos sobre a vida de Kafka.
Com base em cartas, Lemaire lembra ainda que Kafka “não se alegra menos em saber que Felice também tem inclinação para seguir uma dieta vegetariana” (2006, p. 159). Mais tarde, ele defende uma interpretação vegetariana da Bíblia.
“Moisés conduziu os judeus pelo deserto para que, durante esses quarenta anos, eles se desacostumassem a comer carne. O maná, dieta vegetariana. As perdizes mortas, o desejo de “cozidos de carne” egípcios. No Novo Testamento, Jesus é ainda mais explícito, ele fala do pão: ‘Este é meu corpo’” (2006). O trecho acima integra uma carta de 13 de janeiro de 1921 enviada por Kafka a Max Brod.
Em “Franz Kafka – Diários” consta que ele escreveu em 27 de dezembro de 1910, quando tinha 27 anos, que começou a imaginar o seu jantar vegetariano enquanto liam para ele “A Sonata a Kreutzer”, de Tolstói (2021, p 50-51). É interessante essa revelação de Kafka porque Tolstói também abdicou do consumo de animais, tornando-se mais tarde uma das mais importantes referências do vegetarianismo ético russo.
Kafka também escreveu na mesma carta que entre os benefícios experimentados com a mudança na sua alimentação estava a sua melhor digestão (2021). Já em carta a sua amiga Grete Bloch, de 9 de março de 1914, ele relata que estava em um momento da sua vida em que ele só precisava de “um quarto, de alimentação vegetariana e praticamente de mais nada” (2021, p. 484). Essa citação faz parte de um período em que o escritor desejava mudar-se de Praga para Berlim.
“Lá, posso explorar melhor e mais rapidamente minhas habilidades como escritor no jornalismo e encontrar, assim, algum sustento em certa medida adequado. Se, além disso, serei capaz de trabalho mais inspirado, isso não posso dizer agora, nem mesmo com o grau mais mínimo de certeza. O que creio saber efetivamente é que, da situação de autonomia e liberdade que terei em Berlim (e por mais miserável que ela seja), extrairei a única felicidade de que sou capaz no momento (2021, p. 483).
O desejo de mudança de Kafka vem constantemente acompanhado de uma preocupação em encontrar uma alimentação adequada. Isso é reforçado também na mais recente das biografias citadas, “Kafka – Os Anos de Discernimento”, de Reiner Stach, publicada em 2024 no Brasil. Isso mostra que Kafka se preocupava em não transigir em seus hábitos alimentares, mesmo que tivesse pouco para gastar e pouco ou nada ainda conhecesse do lugar onde estava:
“Logo após o primeiro café da manhã — era domingo de Páscoa — ele começou a caminhar pela cidade, debaixo de chuva e frio incomum, a fim de procurar uma hospedagem localizada em lugar mais tranquilo e mais barata. Um sanatório estava totalmente fora de questão, e ele queria manter essa decisão, e havia suficientes quartos em casas de família — e ele seria bem-vindo em todos. Por fim, Kafka descobriu uma pensão escondida entre muitas árvores em Merano-Untermais (à época, um distrito independente). Vistoriou o lugar, checou quartos e refeitório, e como a corpulenta e simpática proprietária não se assustou com suas necessidades vegetarianas e outras mais, ele aceitou. Quinze liras por dia ou 4,5 coroas tchecas. Nada exagerado para um secretário” (2024, p. 404).
Leia também “Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka“, “Kafka: O açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate“, “Como Tolstói influenciou o vegetarianismo na Rússia“, “Podemos falar pelos animais?” e “Açougue é um lugar de morte“.