Matadouro é cenário de drama húngaro  

Em “Corpo e Alma”, de Ildikó Enyedi, humanos buscam conexão em um espaço de desconexão com outros animais

O filme “Corpo e Alma”, da húngara Ildikó Enyedi, é um drama que tem como cenário um matadouro. Somos introduzidos a uma realidade em que nada é ocultado sobre a normalização e crueza do fim de tantos animais.

Não há romantização sobre isso. Vemos corpos balançando e tombando, sangue no chão e a remoção de partes desses corpos. Conhecemos animais que logo já não estão ali. A forma viva que observa, evocando um confronto com o espectador instantes antes de um disparo que penetra o crânio, logo é um corpo pendurado e empurrado para um setor de refrigeração. Enyedi não poupa o espectador do que é visceral sobre a realidade desses animais.

Embora o filme seja centrado nas dificuldades enfrentadas pelo diretor financeiro do matadouro e a inspetora de qualidade na busca por uma conexão humana, mesmo diante das dificuldades de comunicação, isso ocorre em um cenário de desconexão com outras vidas, como as bovinas.

O que os humanos buscam para si é uma impossibilidade para outros animais que estão ali, e não porque eles não podem estabelecer conexões, e sim porque são privados de tê-las. No filme, humanos estão o tempo todo diante de outros animais no matadouro, mas se o animal ali não é ignorado como vida é somente porque o fim depende do que é precedente como vida.

Há um momento em que há um reconhecimento sobre o impacto do matadouro sobre o animal, como quando o diretor financeiro questiona um recém-contratado sobre o que ele pensa dos animais que “são processados” naquele lugar, se ele não sente pena deles.

O rapaz responde que não pensa sobre isso, ratificando a desconexão entre o humano e o não humano, mesmo que haja uma breve relação física entre eles, baseada no que para um é matar e para o outro é morrer. O rapaz não é apenas expressão de si, mas da verdade que ultrapassa os limites do matadouro, porque não apenas ele como a maioria não pensa no assunto.

O filme explora a relação contraditória entre a expressão de sensibilidade e de insensibilidade, em um contexto em que a primeira é aperfeiçoada, porém não na relação com outros animais. Nada muda para os animais não humanos naquele lugar.

Quando a inspetora de qualidade busca superar sua resistência ao contato físico na relação humana, como um simples toque, o primeiro contato com uma forma viva se dá por suas mãos que percorrem o pelo de um silencioso bovino no matadouro, mantido em um espaço de confinamento – um contato que não é sobre uma transformação nessa relação.

O toque humano-não humano surge pela disponibilidade daquele corpo vivo mantido cativo, usado também como preparação para um toque humano-humano. Nisso o animal também é meio para um outro fim, “um treino para uma outra interação” – um corpo quente para ser tocado e que ao mesmo tempo não pode ser removido do lugar imposto de ser despedaçado.

A carícia no boi surge como expressão de interesse unilateral. Ocorre pelo que limita-se à condição humana da inspetora e seu intento que não é sobre esse animal. Não importa a reação bovina, mas a reação dela diante de outro corpo vivo. O toque então tem um sentido limitado, mimetizado.

Nas cenas em que podemos observar a inocência dos animais instantes antes do abate, e porque não esperam o abate, há uma confiança que será repetidamente traída. Nesse contexto, é o humano que não é confiável, e ao mesmo tempo é quem busca estabelecer uma relação de confiança e cumplicidade com seus semelhantes, numa constante contradição por simultaneidade.

Quando dois bois escapam do matadouro, a preocupação é em sedá-los o mais rápido possível para que mais tarde sejam abatidos. Em “Corpo e Alma”, também surge uma investigação envolvendo o que chamam de “pó de acasalamento”, um produto que é usado para explorar e manipular a sexualidade dos animais de acordo com interesses econômicos e de consumo. Sobre essas duas situações, não há uma preocupação com os bovinos, mas com o que deve ser feito deles para que corresponda à finalidade humana.

É intrigante como os animais são vistos, tocados, mas como desconhecidos, estabelecendo uma constante diferença entre o que se toca e o que se é. O diretor financeiro Endre (Géza Morcsányi) e a inspetora de qualidade Mária (Alexandra Borbély) começam a compartilhar um sonho, em que um participa da experiência onírica do outro. Ambos são animais, não humanos, um cervo e uma corça, e vivem uma liberdade longe daquela realidade.

Lá, eles procuram folhas para comer e não participam da violência contra outros animais. Não atuam em um matadouro, são criaturas livres em conexão. Ao mesmo tempo, vivem também a realidade impossível para os bovinos do matadouro – uma liberdade que eles não terão. Assim a liberdade nessa forma pode ser pensada tanto como um desejo humano quanto não humano.

Logo o sonho é o estabelecimento também de uma conexão não reconhecida entre humano e não humano, porque mesmo nessa sensibilidade compartilhada a exclusão do não humano que vive a realidade do matadouro é mantida, porque ele não é considerado como indivíduo que anseia por tal liberdade e merece tê-la.

Há uma parte do filme em que já não vemos os animais no matadouro, embora tudo continue ocorrendo no matadouro, o que evoca tanto uma secundarização quando uma invisibilização diante do que é prioritariamente humano. Isso faz pensar na constância de antes, na presença marcante, no perceber que estávamos o tempo todo entre bovinos e humanos.

São animais que no filme são mostrados de várias maneiras, separadamente e depois juntos dos humanos, mas como se nunca estivessem realmente juntos, por uma separação em que o espaço não determina nem favorece uma relação por reconhecimento sobre quem é esse outro inconsiderado.

Várias vezes, podemos observar a calma dos animais em determinados espaços, a imperturbabilidade que não chega aos que estão sendo preparados para a morte, o que deveria incomodar o espectador ainda mais. Quando o abatedor Sanyi (Ervin Nagy) interrompe uma conversa entre Mária e Endre para flertar com ela, Endre se afasta e as cenas com animais retornam – o sangue no chão, os corpos pendurados, a sangria.

É como se essa cena rompesse a conexão com a ilusão onírica, de uma liberdade silvestre, para recuperar o que é concreto sobre a realidade naquele cenário, a perpetuidade da violência e os obstáculos de uma conexão, e que culminam em atos extremos.

O filme Teströl és Lélekröl (Corpo e Alma) está disponível no Mubi.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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