No livro “A Origem da Desigualdade Entre os Homens”, publicado em 1755, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, considerado um dos mais importantes do Iluminismo, defende que humanos não deveriam comer carne (2017, p. 112). Ele aponta que o consumo de carne também é expressão de desigualdade e cita relatos da antiguidade como favoráveis a essa abstenção.
Rousseau referencia Jerônimo, elevado a santo pela Igreja Católica, assim como doutor da Igreja, que registrou que: “Dicearco relata em seus livros das antiguidades gregas que sob o reinado da Saturno, quando a terra ainda era fértil por si mesma, nenhum homem comia carne, todos viviam dos frutos e legumes que cresciam naturalmente.”
Esse período também é citado por diversos outros autores, gregos e não gregos, como a “era de ouro”, incluindo Pitágoras. Rousseau observa que viajantes modernos, como François Corréal, também encontraram povos que ainda preservavam o bom costume de não se alimentar de animais – como os habitantes das Lucaias que os espanhóis transportaram para Cuba e São Domingos (p. 113).
Rousseau estabelece uma associação entre o não consumo de carne, que pretere a violência da qual depende esse hábito, com uma maior predisposição a um comportamento e atitudes mais pacíficos em relação à vida e ao mundo – usando como exemplo povos que assim viviam fora do Ocidente.
Antes de apresentar uma posição desfavorável ao consumo de animais, Rousseau sustenta que todo animal tem ideia, já que tem sentidos. “Ele inclusive combina até certo ponto suas ideias, e sob esse aspecto o homem só difere do animal em intensidade” (p. 45). Rousseau antecipa o que somente no século seguinte seria defendido por Darwin, e quando o filósofo suíço, que também seria uma influência para o Romantismo, já havia falecido.
O filósofo também confronta na obra a ideia de que determinadas emoções e sentimentos são exclusivamente humanos; o que seria justificado por uma capacidade exclusiva de razão que falta a outros animais (p. 60). Ele cita como exemplo baseado em suas observações a ternura que muitas mães de outras espécies demonstram por seus filhos e dos perigos que elas enfrentam para protegê-los.
“Observamos todos os dias a repugnância que têm os cavalos a pisar num corpo vivo. Um animal não passa sem inquietude perto de um animal de sua espécie morto. Há alguns que até dão a este uma espécie de sepultura” (p. 60). Tais argumentos evocam um outro olhar para o animal não humano e sua condição. O que o autor apresenta serve para repensar a relação humana com esses animais.
Rousseau ainda observa de forma empática a miséria não humana no matadouro quando o animal é colocado diante do próprio fim: “E os tristes mugidos do gado ao entrar num matadouro anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o choca” (p. 60). Observação semelhante será feita por Tolstói no século seguinte, no ensaio “O Primeiro Passo”, após ele visitar os matadouros na região de Tula.
Na obra, Rousseau também reconhece a comiseração como uma qualidade humana, que surge como um sentimento que resulta do imaginar-se no lugar de quem sofre. Segundo ele, um sentimento muito mais vivo em povos considerados “não civilizados” do que nos classificados como “civilizados”, termos que também surgem como uma forma dos povos ocidentais se classificarem como mais evoluídos do que os outros.
Nesse ponto, ele coloca em conflito o próprio sentido de “civilização” e de “civilizado”, se é exatamente quem é chamado de “bárbaro” que dá mais mostras de comiseração, de preocupação com o outro. “De fato, a comiseração será tanto mais enérgica quanto mais o animal espectador se identificar mais intimamente com o animal sofredor” (p. 62), o que ele percebe menos no Ocidente e algo que ele vincula à própria percepção de razão no Ocidente por influência da filosofia dominante.
Assim comete-se um equívoco ao crer que tudo que é razão deve estar em sentido contrário à comiseração ou empatia, como se fossem antagônicos. Para Rousseau, a comiseração pode ser considerada desenvolvida no “homem civilizado”, mas fracamente.” Segundo ele, porque, a “civilização”, no seu paradoxo, também afasta o ser humano da comiseração. “[…] Os caraíbas, que é de todos os povos existentes o que até agora menos se distanciou do estado de natureza, são precisamente os mais pacíficos…” (p. 65). Nessa passagem, ele permite uma relação do ser mais pacífico com também ser mais empático, mais compassivo – observando também, em outras passagens, a relação com outros animais.
A partir das suas observações sobre a lei de propriedade (p. 87), que para Rousseau também surge como lei da desigualdade, podemos pensar também no estado dos animais como propriedades (e que persiste até hoje e, diferentemente da escravidão, ainda é percebido como algo aceitável e natural), já que depois das coisas não vivas decidiram fazer o mesmo com quem tratariam como “coisas vivas”.
Afinal, basta olharmos ao nosso redor para perceber que animais são criados principalmente como alvos de comércio (para uso e consumo), e por isso seus interesses contam menos do que os interesses de quem os possui, algo fortalecido pela imposição a eles do estado de propriedade.
Referência
ROUSSEAU, J.J. A Origem da Desigualdade Entre os Homens. 1.ed. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2021. 144 p.
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