Por que não pensar na carne como um animal?

Uma reflexão sobre o incômodo de ver o animal na carne a partir do filme “Saída à Francesa”

Há um diálogo interessante para refletir sobre o consumo de animais a partir do filme “Saída à Francesa”, de Azazel Jacobs. Em uma cena, Madame Reynard (Valerie Mahaffey) conta a Frances Price (Michelle Pfeiffer) que seu marido morreu engasgado com carne de cordeiro. “E você comeu cordeiro depois disso?”, questiona Frances. “Não, mas sabe, nunca gostei de cordeiro.”

Frances diz que também não e explica que o formato da carne a lembra que o animal existiu, o que a faz pensar na morte do cordeiro. “Nunca pensei nisso antes”, admite Madame Reynard. Frances então acrescenta que já “um filé é simplesmente um filé”.

A percepção de Frances coincide com a de todas as pessoas que evitam comer animais ou partes de animais que façam-nas lembrar que estão se alimentando de algo que foi parte viva de alguém. Então dão preferência ao que o costume dificulta uma associação com o animal, com a vida e com a morte.

Frances sabe que toda carne que ela come é parte de um animal, de uma privação do viver, mas o que a incomoda é somente o que diante de seus olhos evoca isso de forma inegável à sua consciência.

Ao dizer que nunca tinha pensado nisso, Madame Reynard expressa não apenas concordância como uma percepção que passará a acompanhá-la a partir dessa interação. No entanto, “se o filé é simplesmente um filé”, não é porque é somente isso, e sim porque pode ser pensado somente como isso, pela conexão que pode manter-se nos limites desejáveis de Frances.

O que agrada Frances em relação ao filé é a contínua possibilidade de abstração, porque o filé não traz a forma que contra a sua vontade a levará a pensar num animal. A violência que reconhece sobre o cordeiro, ela nega em relação ao filé, e sobre o qual sequer faz referência a um animal.

A ideia de que o “filé é simplesmente um filé” é comum e evidencia a estranha percepção de que a carne pode ser pensada como se tivesse surgido como carne, em uma impossível não relação com o animal.

Enfim, o não comer o cordeiro é expressão de empatia seletiva que toma Frances pelo desconforto. Não estende-se aos outros animais que ela come porque não é tomada pela mesma percepção nem deseja desenvolvê-la. Quantos humanos são assim?

O filme está disponível na Netflix.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

2 respostas

  1. David, recentemente assisti a um filme húngaro intitulado “Alma e Corpo”, disponível no MUBI/Prime Video.
    A trama é sobre a estranha relação entre uma jovem mulher e um homem mais velho que trabalham em um matadouro. Ele é o diretor financeiro e ela a responsável pelo controle de “qualidade”.
    Há cenas explícitas de abates. No começo, você pensa que o filme vai de alguma forma trazer uma reflexão vegana, mas não.
    Quando não aparecem sendo imobilizados e assassinados, os bovinos aparecem à espera e à espreita, sempre calmos e dóceis, como se os diretores do filme quisessem mostrar que é essa a condição deles, de passividade e tranquilidade diante da morte iminente.
    Depois de um tempo e com o desenrolar da história principal, essa brutal realidade vai aos poucos cedendo lugar aos anseios e desejos humanos dos protagonistas.
    É um filme que causa estranhamento mesmo. Fiquei pensando nesse apagamento, esquecimento ou indiferença que o filme provoca no telespectador em relação aos animais ali mortos.
    Gostaria de ler sua interpretação sobre.
    Venho acompanhando as dicas de filmes publicadas aqui e te agradeço por isso. Estou assistindo a quase todos.

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