
No romance “Uma Exposição”, de Ieda Magri, ela não diz em algum momento para você parar de comer carne. O livro apresenta os conflitos da própria autora em relação ao consumo de carne ao retornar para sua cidade natal no interior de Santa Catarina para rever a família.
Nesse período, ela estabelece uma ponte entre o passado e o presente ao explorar as tantas vezes em que comer animais já era reconhecido como indissociável da morte – ainda que a maneira de se pensar a morte e atribuir-lhe importância seja variável.
Sua vivência lembra que ainda há lugares pelo interior do Brasil onde as pessoas preferem matar os animais que vão comer. Ou quando não os matam, pelas mudanças trazidas pelo tempo, testemunham a morte deles.
Ieda incomoda menos por sua posição em relação ao consumo de carne do que pela descrição e detalhes de tudo que testemunhou e até do que participou diretamente em relação ao abate de animais. Pelo próprio exemplo, mostra que mesmo crianças podem dissimular sobre o impacto dessa experiência para o próprio animal, se crescem em um contexto em que isso é normalizado.
“Caiou deu-lhe tempo, olhando sempre o boi, nunca pra nós, e então andou mais um pouco pra frente, o boi obedeceu, de novo hão havia saída, parou, se contorceu, tentou recuar, se soltar da corda…”
Na história, ela não traz apenas a experiência do animal que será abatido, é também sobre a reação dos outros que logo terão sua vez e como essa percepção é influenciada pelo que reconhecemos como um mal para eles, mesmo quando não se deixa de participar desse mal.
“Será que ele pressentia o que estava prestes a acontecer? Ele sentiria? Saberia? A princípio, ele foi sossegadamente. Mas então percebeu algo porque se recusou a continuar andando. Mas o mais estranho, a partir desse momento, foi ver os outros bois e vacas vendo tudo. Eles se recusavam a ir embora e nos olhavam muito fixamente, como se protestassem ou fossem solidários. Todos aqueles olhos acusativos.”
O romance conta com fotos em preto e branco que se entrelaçam à narrativa e que tiveram um impacto maior em Ieda por um olhar diferenciado em relação à própria experiência de estar presente.
A realidade dos animais e a percepção dela sobre suas vidas são intercaladas por conflitos familiares que resultam das transformações determinadas por distanciamentos, reencontros, esvaziamentos, tentativas de preenchimento.
No caso dos animais, não há afastamento, mas apagamento, substituição, esquecimento. Ieda não romantiza a relação de consumo com os animais. O romance também revela uma influência das contradições exploradas por J.M. Coetzee, autor de “A Vida dos Animais” e Elizabeth Costello” – obra centrada na personagem homônima que ele traz também em “Contos Morais” – e sobre quem já publicamos alguns artigos na Vegazeta.
O que reverbera essa contradição em “Uma Exposição”, por exemplo, é o momento de matar o animal para comer e o lamento momentâneo por sua morte, que pode ser na forma silenciosa de uma lágrima ou de uma expressão que logo é preterida pelo prazer de comer.
Para quem fica há a certeza da continuidade, mas e para quem é impossibilitado de ficar? Enquanto se prepara para comer carne, a autora-protagonista reflete sobre a violência de tê-la para comê-la. Ieda também traz o exemplo do bovino que foi morto e comido porque não servia para a carroça.
“O mais terrível era não saber se os animais sabiam ou não que iriam morrer, se eles sentiam ou não com antecedência. Na hora em que estavam sendo mortos, eles sabiam, eles sentiam não só a dor, mas também a angústia, porque, do contrário, por que se recusariam à corda e à faca?”
A confiança dos animais na hora do abraço, na forma de uma mão que envolve e de outra que o ataca com uma lâmina, expõe essa contradição tão comum da traição que resulta no ato de comer carne. Ocorre ali, mas ocorre também em tantos lugares, e que chegam ao prato de tanta gente que nunca terá contato com essa realidade.
O abraço não é pelo animal, mas pelo que se visa em relação ao animal. Portanto, ainda que se veja o animal, e o reconheça dessa forma, se ele é reduzido a um meio, o que isso diz sobre o reducionismo de pensá-lo? Mas isso é visto como aceitável, tratado como aceitável. E deveria?
É uma pergunta que o romance pode evocar no leitor até de forma independente do que pensam os personagens da história, mas pelo que é concreto nessa história – a confiança do animal, sua mansidão, resistência mesmo quando já é tarde demais, assim como seu sofrimento e seu completo esvaziamento que tem como fim só um corpo fragilizado a ser despedaçado.
O incômodo sobre essa realidade não depende da posição de Ieda sobre ela comer ou não animais, assim como de qualquer pessoa de sua família que participa da história, porque a obra permite que o leitor seja impactado pelo que é trazido sobre a realidade e experiência desses animais, e que é de tantos animais, todos os dias, o tempo todo.
“Meu irmão e eu olhávamos de fora, pelas janelas baixas. Havia sempre um tio ou dois, pra ajudar a segurar o porco. Era triste, mas era rápido. O porco gritava, o porco chorava, meu pai repetia as facadas quantas vezes fossem necessárias, nunca muitas. O porco morto no chão e a água forte da mangueira empurrava o sangue pra vala na entrada do porão.”
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