No livro “Walden ou A Vida nos Bosques”, publicado em 1854, em suas reflexões em meio à natureza, o filósofo e naturalista estadunidense Henry David Thoreau, defende que é parte do destino da raça humana, em seu aperfeiçoamento gradual, deixar de comer animais (2021, p. 192).
Também conhecido por seu princípio da desobediência civil, Thoreau relata que diversas vezes foi questionado se achava que poderia viver apenas de comida vegetal. A pergunta, segundo ele, era feita em tom de descrença, porque surgiam como que para desmotivá-lo, embora não impactassem de tal forma.
Na obra, ele também se posiciona contra o uso de tração animal e observa que, se um animal usado para esse fim é alimentado, infelizmente é somente porque ele é instrumentalizado.
“Eu jamais domaria um cavalo ou um touro e o alimentaria pelo trabalho que ele poderia fazer por mim […]” (p. 61). Para Thoreau, suprir as necessidades de um animal não pode ser condicionado aos benefícios que ele pode nos proporcionar. Pensar dessa forma é crer que a vida do animal só é válida à medida do uso humano.
Não menos depreciativa é sua posição em relação à caça: “Quanto tempo, diga, um homem caçaria girafas, se pudesse? Narcejas e galinholas também podem proporcionar um esporte raro, mas creio que seria mais nobre atirar em si mesmo” (p. 275).
Ele já havia referenciado antes em “Walden” que a lebre, um alvo tão comum da caça, em seu momento extremo, chora como uma criança (p. 142). Portanto por que não considerar os sentimentos do animal como vítima em vez de considerá-lo meramente como alvo?
Ademais, como ele próprio observa, a riqueza de um homem é proporcional às coisas que ele pode deixar em paz (p. 81). Nessa conclusão, mais uma vez, podemos pensar também nos animais não humanos prejudicados pela ação humana.
Essa observação está na esteira da consideração feita por Thoreau após adotar uma vida simples, mais próxima da natureza, e a partir da qual pôde refletir melhor sobre a natureza humana e sua relação com outras espécies e com o meio natural:
“Meus inimigos são minhocas, dias frios e, sobretudo, as marmotas. Estas últimas roeram um quarto de acre até limparem tudo. Mas que direito eu tinha de tirar a erva-de-são-joão, e o resto, e desmanchar a horta de ervas ancestral delas?” (p. 142). Thoreau reflete sobre algo ainda urgente na atualidade, que é deslocar a consciência humana para o que não é estritamente humano.
Em outro momento em que aborda a alimentação, ele conclui que há algo essencialmente impuro a respeito da carne e revela que não passou a se abster de comida animal por qualquer efeito ruim ligado à carne, mas porque não era agradável à sua imaginação (p. 191).
A percepção de “impuro” pode ser vinculada à violência, ao derramamento de sangue, que há por trás da carne, como fizeram outros pensadores da Grécia Antiga e fora dela, já que essa posição dos gregos também foi influenciada por povos não gregos.
Nessa passagem, Thoreau sugere que sua motivação não relaciona-se à saúde. “A repugnância à comida animal é efeito não da experiência, e sim de instinto. […] Creio que cada homem que foi honesto em preservar suas faculdades superiores ou poéticas nas melhores condições sentiu-se particularmente inclinado a se abster de comida animal […].”
A colocação acima é relacionada também ao ato de refletir, e não apenas reproduzir, porque quem reflete sobre os próprios hábitos pode estabelecer com eles conflito se pondera tudo que envolve a comida animal, do que depende essa alimentação.
Ele também avalia que o ato humano de comer carne é vergonhoso. “É verdade, ele [homem] pode viver e vive, em grande medida, predando outros animais, mas esse é um costume miserável – como qualquer um que pegue lebres e mate ovelhas pode descobrir -, e será visto como um benfeitor da raça aquele que ensinar o homem a se ater a uma dieta mais inocente e saudável” (p. 192).
A reprovação do ato de matar e/ou consumir animais em Thoreau vem acompanhada de uma idealização em que o ser humano livre-se desse costume. Essa posição estimula uma percepção de que pensar os animais como alimentos é não pensá-los no que são, mas somente no que se quer fazer deles.
Ele oferece um reforço a essa contrariedade ao parafrasear o filósofo chinês Mêncio, na conclusão de que o que diferencia os humanos de outros animais, a quem chamavam ou chamam de “brutos”, é algo muito irrelevante (p. 194-195).
Thoreau também aponta que a agricultura foi transformada em algo muito diferente do que foi no passado. “[…] parecia que uma antiga nação extinta vivera ali e plantara milho e feijão até que o homem branco apareceu para limpar a terra e, em alguma medida, exauriu o solo para essas mesmas plantações.”
Ele crê, com base na poesia e mitologia ancestrais, que a agricultura já foi uma arte sagrada, mas prejudicada principalmente pelo aumento do interesse na formação de grandes fazendas e grandes produções, tornando o exercício agrícola omisso e feito às pressas por estar mais condicionado ao lucro. Em consequência disso, o sabor de vários alimentos mudaram.
Thoreau também defende a sobriedade, e diz que a água “é a única bebida para um homem sábio” (p. 193). A oposição a esses costumes, como o de se alimentar de animais, também faz parte do que Thoreau chama de “obediência as leis de seu ser”, já que se, por exemplo, a lei garante o direito de causar mal aos animais para alimentação (é preciso explorá-los e matá-los), o ser humano pode “guiar-se pela sua própria lei” que reprova tal legitimidade. Afinal, não é porque é lei que é correto ou que deve ser perpetuado.
Uma consciência que na metade do século 19 leva a uma observação de que é nosso destino deixar de comer animais está também na esteira da oposição à escravidão. Thoreau é um pensador que não se limita a reconhecer a subjugação como uma prática somente humana em relação a humanos. Uma observação feita por ele em relação à escravidão serve também para o nosso tempo em relação à exploração animal:
“Há centenas de pessoas que se opõem à escravidão em opinião, mas que nada fazem de efetivo para nela pôr fim” (p. 293). Em relação aos animais não humanos, podemos reconhecer que a exploração, pelo menos a que depende de hábitos alimentares, pode chegar ao fim com a simples mudança de nossos hábitos.
Referência
THOREAU, H.D. Walden ou A Vida nos Bosques. 1.ed. São Paulo: Planeta, 2021. 320 p.
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