No romance “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo, há um momento em que Ponciá está deitada na cama imunda ao lado do marido. De barriga para cima, ela fica com o olhar encontrando o nada, conforme narra a autora.
“Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus?” A própria condição de irrealização de Ponciá, que é um reflexo de sua própria miséria, já que ela vem de uma realidade familiar de exploração que atravessa gerações e da qual tenta se libertar, assim como libertar sua família, faz com que ela pense na vida dos porcos.
É uma passagem que nos permite pensar tanto a metáfora quanto a literalidade, já que porcos são trazidos ao mundo somente para morrer. Nem mesmo a comida destinada aos porcos é realmente sobre satisfazer suas necessidades e sim sobre engordá-los para matá-los.
E o tempo de vida, que é o tempo de ser morto, é determinado pelo peso atingido, podendo até ser mais breve do que já é breve. Logo o “comer e dormir para ser sacrificado um dia” soa terrível para Ponciá, numa interrogação que também é desconfortável exclamação, porque evoca uma realidade que não pode ser agradável nem mesmo em relação à vida de um animal não humano.
Se a vida suína é referenciada para pensar a vida humana como algo ruim – Ponciá quer romper com a imposição de exploração, que em outro contexto se metamorfoseia, ganha novas formas, já que se trata de um problema estrutural que a leva ao adoecimento, matando-a aos poucos – é porque a vida dos porcos não pode ser realmente pensada como boa.
Ela não deixa de lembrar que “serão sacrificados um dia”, e um dia que está mais próximo do que parece, mesmo na sua observação de indefinição. Ademais, o “comer e dormir” nesse contexto tem um peso diferente do “comer e dormir” em um contexto de privilégio, porque o porco também não pode fazer prevalecer interesses que ameacem o que é imposto a ele.
Afinal, o “comer e dormir” em relação ao porco é o “comer e dormir” que o levará por determinação humana à morte (abate), mesmo que o porco nunca coma nem durma com esse propósito – uma arbitrariedade que ele nunca adota como finalidade.
O viver dos porcos para não viver é incômodo para Ponciá pelas associações que ela faz com a própria vida. Mas se a vida desses animais é algo que não desejaríamos para nós, por que concordar que essa deve ser a vida deles? O consumo ou o lucro são motivos realmente aceitáveis que justificam vidas breves e miseráveis?
Ao darmos atenção à metáfora da vida não humana para pensar a vida humana, se a contestação é sobre práticas de exploração e as impossibilidades de realização em decorrência delas, não devemos ignorar que a realidade que ampara a metáfora já é uma realidade em si reprovável por suas implicações para quem a vive.
Em “A Política Sexual da Carne”, Carol J. Adams observa que se a metáfora que envolve a opressão animal é usada para chamar a atenção para uma opressão humana, por que ignorar que o mal que serve como metáfora já é uma forma de opressão (não humana) a ser reprovada? Que é a realidade de tantos animais submetidos o tempo todo a interesses de consumo. Portanto o que deve ser reprovado não é somente a opressão como experiência humana.
A coisificação
No romance homônimo, Ponciá Vicêncio (mulher, negra e pobre) é vítima de uma estrutura social e econômica opressora que a reduz à condição de corpo que trabalha, come e dorme para sustentar um sistema que a destrói (ela começa a adoecer em consequência dessa exploração que é forma de privação e prisão). Já o porco é vítima de uma estrutura zootécnica e econômica que o reduz a um produto, um corpo que come e dorme para ser destruído – gerar lucro e ser consumido.
As realidades compartilham a lógica da coisificação, sendo literal a do porco, já que o corpo não humano, como lembra-nos Carol J. Adams, realmente é vendido e consumido em pedaços. Há uma negação da subjetividade, dos desejos, do tempo de vida e da finalidade intrínseca do ser em prol de um fim externo (lucro, consumo, serviço).
Como reflexo da coisificação, o domínio sobre os porcos, que se tornarão o “referente ausente” de Adams, já que são invisibilizados em forma de produtos (como a carne), é precedente ao nascimento – sua condição biológica é alterada (“aperfeiçoamento genético” para corresponder a interesses de lucro e consumo (mais carne em menos tempo). Além disso, sua vida, e hoje mais do que nunca, comumente envolve separações parentais, mutilações (dentes, rabo, dolorosas e profundas marcações na pele), supressões de comportamentos naturais e outras privações.
Se a miséria humana deve ser superada ao usar a realidade não humana como exemplo de uma vida miserável é porque a vida não humana também precisa ser repensada de forma a superar essa opressão. A miséria animal não é apenas um espelho útil para entender a miséria humana; ela é uma miséria em si mesma, com suas próprias vítimas.
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