
Temos o direito de criar vidas condenadas ao sofrimento? Em “Frankenstein”, tanto na obra de Mary Shelley quanto em suas adaptações cinematográficas, como a de Guillermo del Toro, lançada pela Neflix, uma criatura é trazida ao mundo para não ter um lugar no mundo, para ser um fim em seu criador – a materialização de uma busca por glória e uma ambição científica. Portanto o interesse da criatura é tratado como irrelevante.
No filme de del Toro, aquele que chamam de “monstro” (Jacob Elordi) é mantido acorrentado até o momento em que consegue fugir. Sua fuga ocorre quando o objetivo é matá-lo, porque ele não cabe dentro dos interesses do seu criador Victor Frankenstein (Oscar Isaac). Ao manifestar interesses próprios, o conflito se torna ainda mais evidente, porque externa a impossibilidade de que a criatura seja um mero fim em seu criador.
A instrumentalização da vida e a condição artificial
A condição da criatura chamada de “monstro” permite-nos pensar em muitos animais trazidos ao mundo para que sejam explorados para consumo e para outros usos. Eles são tratados como se não tivessem interesses próprios e, mesmo quando há algum reconhecimento de interesse próprio, não é permitido que o interesse do animal prevaleça sobre o interesse humano em submetê-lo.
Não por acaso, a maioria dos animais trazidos ao mundo pelo ser humano o são apenas para que sejam mortos – a carne como fim. A extensa continuidade disso revela a indiferença em relação aos interesses desses animais. E muitos também são mortos quando não correspondem mais ao propósito para o qual foram criados – como vacas, galinhas, etc.
O que une a criatura de Frankenstein e animais criados para lucro-consumo é que suas vidas foram instrumentalizadas. Elas não têm seu valor intrínseco reconhecido; seu valor é derivado da sua utilidade para outros. E assim como a criatura de Frankenstein é submetida a uma condição não natural, os animais explorados nas relações de lucro-consumo também são.
Eles não existem na natureza e resultam de seleção artificial e modificação genética visando, por exemplo, maximizar a produção de carne, leite ou ovos para consumo humano. Seu corpo, sua fisiologia e seus instintos mais básicos foram distorcidos para atender a um fim externo. Logo, não é algo sobre o que esses animais podem prevalecer, se a marca desse domínio precede o próprio nascimento. Ademais, isso é impor ao animal um controle que ele nunca poderá ter sobre sua própria condição.
O “não lugar” e a negação da vida e da morte
A criatura de Frankenstein também tem um conflito constante com sua própria condição, porque ela não sabe quem é – vê a si mesma como uma mistura de “destroços humanos” – e experimenta o conflito de uma existência que é tratada como se não pudesse ser vivida. E o que torna isso mais grave, como no que é tão explorado na versão de Del Toro, também não pode morrer.
Ainda assim, pode experimentar a dor de uma forma que nenhum ser humano pode, na repetição da constante impossibilidade que é morrer, mesmo quando é alvo de tantos tipos de ataques e violências que facilmente teriam matado um ser humano comum. Não poder viver e não poder morrer é o que coloca a criatura em uma condição extremamente conflituosa e arbitrária de “não lugar”. Um tipo de “não lugar” é também onde tantos animais criados para fins de consumo habitam transitoriamente, já que não são criados para a vida – sendo a vida somente um meio e não um fim, já que o fim imposto a eles é o fim no ser humano.
O fim no ser humano é também o que marca a criatura como impossibilidade em si mesma e sua luta por agência, por uma conexão que apazigue o constante sofrimento – como quando exige de Victor a criação de uma companheira, mas tem seu pedido rejeitado. O desespero da criatura por relações sociais também permite-nos pensar sobre a relação social como impossibilidade para tantos animais.
Criados para consumo, frangos são mortos com 35 dias de idade, porcos, com não mais do que seis meses, e bovinos, a partir de um ano. E muitos animais são separados após o nascimento ou pouco depois – como parte de um processo de “eficiência” que acelere a “geração de produtos”. Como são criaturas pensadas como fins que não em si mesmas, ainda que nunca deixem de ter interesses próprios que entrem em conflito com interesses humanos, tudo isso é normalizado.
Sensibilidade, empatia e a luta pelo reconhecimento
Em “Frankenstein”, o monstro que não é monstro luta para ser o seu próprio, para ter uma vida que possa ser dignamente vivida. É sobre interesses básicos que compartilhamos também com outros animais – ter uma boa vida e não ser alvo de um interesse humano arbitrário, que decide nosso estar e nosso não estar de forma externa à própria vontade de quem é impactado negativamente e também irreversivelmente por esse interesse.
No filme, há uma interação da criatura com animais silvestres, como um cervo, com quem compartilha o alimento. A interação é interrompida por caçadores que matam o animal que ele alimenta e perseguem outros. A criatura expressa uma consideração que externa uma empatia não seletiva. Há uma valorização do não humano em respeito ao seu próprio interesse não humano. Podemos inferir que a própria condição da criatura também facilita o reconhecimento da importância que outras criaturas dão à própria vida.

Embora a versão de del Toro não traga isso, não mais do que de forma implícita, e que pode passar despercebida, no livro de Mary Shelley a criatura é descrita como vegetariana e como alguém que tem uma motivação moral, como na passagem: “Meu alimento não é o mesmo que o do homem. Não preciso destruir a rês ou o cordeiro para satisfazer meu apetite. O que preciso para meu sustento, tiro da terra. Minha companheira será de natureza igual à minha e contentar-se-á com o mesmo que eu. Faremos de folhas secas nossas camas. O sol brilhará sobre nós como sobre o homem.”
A criatura vê o “alguém” no cervo, no cordeiro, porque também luta pelo seu próprio reconhecimento como um “alguém”. Esse é outro ponto que subverte ainda mais a afirmação da criatura como monstro. No filme de Del Toro há um momento em que ele nos traz a afirmação de que exatamente quem não é monstro é quem na história é chamado de monstro – como nas observações do irmão William (Felix Kammerer) e da cunhada Elizabeth (Mia Goth) que qualificam Victor como monstro.
A sensibilidade da criatura e a forma como essa sensibilidade ganha ainda mais força e complexidade a colocam em um outro lugar em comparação à moralidade humana, que é, como sabemos, dominantemente especista, porque parte do valor arbitrário baseado na crença da superioridade humana.
Criatura e animais como “algo” e não alguém
Também podemos lembrar como no filme é explorada a falta de empatia de Victor, quando antes de conceber a criatura, ele observa condenados que serão executados, e que visivelmente são pessoas das classes mais baixas da sociedade, portanto também marginalizados, e diz apenas que “Herr Harlander [Christoph Waltz] prometeu acesso a espécimes ideais.” Ele observa humanos e os seleciona como se estivesse escolhendo um produto, um “que” e não um “quem”. Isso em relação a humanos, e não sem razão, é chocante e inadmissível, mas não, e mesmo hoje, se feito com animais submetidos a interesses de consumo.
A mesma perspectiva coisificadora Victor preserva quando, mais tarde, é corrigido ao se referir à criatura como “algo”. “Você não fez algo, você fez alguém”, reage aquele a quem chama de monstro. O mesmo ocorre em relação a tantos animais criados para fim no uso e consumo humano. Mesmo que haja uma referência a um animal como “ele”, o tratamento diz que negamos o sentido de “ele” quando o tratamos como “isso” – já que a coisificação ou produtificação, por exemplo, implica nesse sentido como consequência.
Ademais, a criatura não recebe um nome também como parte de uma negação de identidade, de uma negação como alguém, e a quem Victor nega o direito de viver – outro exemplo que podemos paralelizar com a realidade comum de tantos animais criados para a morte e não para a vida. Não recebem nome porque nega-se a eles a dignidade do viver, sendo coisificados somente para um “estar”, que é transitório; e tem como finalidade a carne.
Dor, vida indesejada e libertação
Outro ponto que merece nossa reflexão e permite outra conexão surge com Elizabeth (Mia Goth), quando diz a Victor: “O que é dor senão prova de inteligência?” Essa observação provocativa surge quando Frankenstein tenta negar o reconhecimento de inteligência à criatura visando diminuí-la em consideração. Em paroxismo, Victor diz enquanto bate na criatura: “A dor é prova de inteligência, não é?” Frankenstein, materializa contraditoriamente nesse momento também a nociva influência consequencial da superada lógica descartiana que foi muito usada na inconsideração aos animais não humanos, na negação de que são capazes de sofrer, já que ele trata a criatura meramente como receptáculo de sua própria vontade.
Nesse egoico ato visceral, ele bate não para perscrutar, mas para negar. Quando a criatura diz a Victor que ele lhe deu “uma vida indesejada”, pelas implicações de um viver que não pode ser seu, também podemos pensar em tantos animais que têm vidas determinadas pelo interesse humano e que seus males decorrem disso, na sua constituição essencialmente arbitrária.
Mas del Toro, em sua identificação e empatia pela criatura, garante-lhe um final em que Victor, pouco antes de morrer, se redime ao reconhecer suas falhas e imoralidade em relação à criatura; que, à sua maneira, liberta e deseja uma boa vida. A criatura, que vivia a miséria de uma culpa que lhe foi embutida, observa o horizonte com sensibilidade e vontade.
Essa libertação nos permite também pensar na libertação que não é dada a tantos animais submetidos à exploração humana – a um viver como impossibilidade quando pensamos que os interesses que operam sobre eles não são deles.
Onde está a monstruosidade?
A monstruosidade não está na criatura que é “diferente”, mas no ato de criação que nega a um ser o direito de viver por seus próprios termos, seja uma criatura literária ou um ser senciente real. A criatura de Frankenstein, que mais tarde reage à sua própria instrumentalização, foi trazida à vida sem que seus desejos, seu bem-estar ou seu lugar no mundo fossem considerados. Sua existência é, desde o primeiro momento, para outro. A mesma realidade é vivida diariamente por animais criados para fins de consumo.
Se a criatura pode ser também uma metáfora para o operário industrial explorado e desprezado no século 19, ela pode ser igualmente uma metáfora para o animal não humano como fim no interesse humano – uma criatura cuja vida, da concepção à morte, é totalmente determinada por um poder criador que é, ao mesmo tempo, onipotente e profundamente irresponsável.
Monstruosidade não é a capacidade de normalizar a imposição de um destino cruel sobre outras criaturas sencientes? Nós, como civilização, domesticamos e modificamos animais. Assumimos o controle de seus corpos, de suas vidas e nos recusamos a encarar a responsabilidade ética total por esse ato.
A violência do “hackeamento” biológico
O acorrentamento da criatura de Frankenstein permite-nos pensar também em animais com fins no consumo que são mantidos presos (engaiolados, em pocilgas ou barracões – impedindo a expressão de comportamentos naturais) até o dia em que são enviados para o matadouro. Enfim, uma prática dominante na criação de animais para consumo.
Os animais a quem impomos uma relação de lucro e consumo sofrem uma violência também fundamental, porque ela molda até mesmo seus desejos e necessidades mais básicas. Seus ancestrais (o javali, o auroque, a galinha-banquiva) tinham uma existência que era um fim em si mesma. Suas funções biológicas (crescer, comer, reproduzir) serviam à sua própria sobrevivência e à de sua prole. Já o animal modificado tem sua biologia “hackeada”.
Seu apetite insaciável, seu crescimento acelerado, sua produção massiva (leite, ovos, etc) são armadilhas biológicas. Seu corpo o trai. O ato de comer, que deveria ser prazer e sustento, leva-o a uma condição física dolorosa e até debilitante. Sua função reprodutiva é cooptada para produzir o que é sistematicamente roubado (leite, ovos, etc), tornando-a uma fonte de estresse e esgotamento contínuos. É um sofrimento que não precisa de autoconsciência humana para ser real. É a dor de ser forçado a ser algo que sua própria fisiologia não suporta, uma vida que é, em sua própria carne, uma contradição.
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