“Hunger”, um filme para refletir sobre o consumo de animais

Há violências que cabem a todos, e outras que não, mas nenhuma delas deixa de ser violência ou significa que devam ser percebidas como desconectadas do mesmo sentido que torna-as inextricavelmente possíveis

 

Disponível na Netflix, “Hunger”, do tailandês Sitisiri Mongkolsiri, é um filme sobre sucesso a qualquer preço e a ilusão da perfeição como exposição, mas permite refletir sobre interesses de consumo baseados na violência contra outros animais pelo que é distinção, já que poder e status no filme estão vinculados ao ato de alimentar-se como diferenciação.

Isso passa pelo que é superlativo na banalização da violência contra os animais e em como a classe social aproxima-as, do que é entendido nesse contexto como um “privilégio”, de consumir um tipo de violência que não é permitido aos outros. Mas em vez dessa violência ser questionada, sua irreflexão pelo que é estrutura, a torna desejada por quem vê-se distanciado de ter a mesma experiência.

Afinal, se o prazer de uns é a potenciação do que é impossível sem violência, os outros devem desejá-la? Podemos pensar em animais que muitas pessoas nunca comerão, o que não significa que, pelo que é condicionamento cultural, não desejem consumi-los, em vez de refutar essa prática, que existe pelo privilégio do que é uma opressão por excepcionalismo.

Uma das cenas de um jantar para um membro do alto escalão das forças armadas da Tailândia é simbólica por sua estética que explicita a relação entre a carne e o sangue – o sangue que é o fim do animal não pelo que é mero interesse em satisfazer uma predileção, mas também imperativo de distinção. A cena é desconfortável pelo que evoca o sangue, as caretas e bocas que respingam o vermelho que envolve a carne.

Sons também reforçam o desconforto, as mastigadas com ferocidade. A ação de consumo é coletiva, mas cada um expõe a partir desse desejo a face de uma arbitrariedade e uma exclusividade. A intenção parece ser a de despertar nojo, talvez não só pelo que pode ser nojento sobre um desejo que depende do sangue, mas também pela distinção.

Outra cena, em que um dos auxiliares do chef diz que alguns jovens não entendem o que estão comendo, mas comem porque podem e querem mostrar que podem, também expõe uma racionalização baseada no que é reafirmação do lugar social. São dois exemplos que externam o mesmo tipo de privilégio fútil, imponderado, baseado no domínio de animais, criticado séculos atrás por Lord Byron em “Don Juan” e Percy Shelley em “A Vindication of Natural Diet”.

E quando consumir o resultado de uma violência que tem um valor (não moral) que pode ser pago por poucos, mas não satisfaz porque não escapa à legalidade, assumindo a forma do “comum” mesmo entre quem é privilegiado, a caça e o preparo de uma grande ave protegida por lei na Tailândia externa outro lugar social da opressão, o de atribuir a si mesmo o direito sobre quem subjugar e matar sem importar-se com as prerrogativas da lei, que já é conivente com o especismo.

O que “Hunger” mostra também é que o supremacismo humano em relação aos outros animais ganha outra forma pelo que é poder econômico, pelo que não sendo legalmente permitido, não deixa de ser visto como realizável dependendo do lugar social que é também lugar de permissividade.

Em um jantar que expõe a rivalidade entre chefs, é notório também que a grande carcaça de um animal exposto para consumo no centro do salão, diante de pessoas que não estão ali para refletir sobre hábitos de consumo, é o sujeito absente, que está ali sem estar, e que também remete a um conceito de glutonaria explorado por Shelley e Byron na questão do que é excepcionalismo pelo que também é excesso no ato de alimentar-se de animais.

Ou seja, há carne, carne demais, e o animal é morto, mais para que possa ser exposto – um fim no desejo, que nem precisa ser saciado, mas amparado pelos limites do que pode ser somente para ser sinalizado e observado. De qualquer forma, facas são disponibilizadas para que possam minorar o corpo do animal, ter a experiência de dilacerá-lo sem a consciência de matá-lo.

No filme há uma exploração dos signos de consumo como referência à estratificação social. O porco enquanto carne assume a forma do popular, assim como algumas espécies aquáticas, enquanto a carne bovina, especialmente do Aberdeen Angus, é o status estabelecido pela expressão do que não pode ser popular.

Ou seja, há violências que cabem a todos, e outras que não, mas nenhuma delas deixa de ser violência ou significa que devam ser percebidas como desconectadas do mesmo sentido que torna-as inextricavelmente possíveis.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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