No livro “Anticapitalismo romântico e natureza: O jardim encantado”, do pensador brasileiro Michael Löwy e do pensador estadunidense Robert Sayre, conhecemos a história e o pensamento do naturalista quacre William Bartram, para quem todas as criaturas do mundo são manifestações do divino e, como tais, possuem valor.
“Profundamente ligadas, elas fazem parte de uma unidade abrangente de formas de vida, com a qual os seres humanos deveriam estar em contato e acolher” (2021, p. 44). Bartram expressa sua intenção de mudar a percepção humana sobre os animais, questionando os males impostos a eles pela unilateralidade de interesses.
Um crítico da “sociedade civilizada”, e que também foi influenciado por sua convivência com povos indígenas nos EUA e seu contato com a natureza selvagem, Bartram tinha uma preocupação em elevar o status dos animais, algo que o colocava em conflito com a visão cristã dominante sobre os animais.
“O autor ironiza a pretensa ‘dignidade da natureza humana’, uma distinção sem nenhum mérito, uma vez que a humanidade se comporta como um ‘tirano absoluto’ em relação a outros animais e ‘provavelmente já teria há muito destruído toda a criação animal se seus braços não fossem contidos pelo Criador supremo e preservador…’” (p. 46).
Bartram coloca o Criador não como endossador do mal contra outros animais, mas como aquele que intervém em defesa dos animais para evitar o total aniquilamento. Embora seja uma questão ainda bastante debatida, essa crença é usada por Bartram para fortalecer sua posição oposicionista, havendo uma inversão do pensamento mais comum e predominante, visando também por meio de sua obra motivar quem pensa de outra forma a repensar o que é prejudicial nas relações humanas com outras formas de vida.
Quando questiona a legitimidade do papel humano no mal contra outros animais, questionando também a dignidade da natureza humana, é a partir disso que ele propõe outro reconhecimento, e que surge para questionar a ação humana:
“[Ele] afirma a ‘dignidade da natureza animal’ e está convencido de que os animais se expressam por meio de linguagens reais e demonstram inteligência racional” (p. 46-47). Assim a inteligência racional que ele reconhece em outros animais é também um confronto a comumente reconhecida inteligência racional humana que é usada para um mal desnecessário e evitável; sendo, na sua crítica, também um paradoxo, por haver nisso expressão de irracionalidade. Afinal, é realmente racional prejudicar outros seres vivos? Há realmente razão em fazê-lo? Nisso então pode-se questionar senão a racionalidade em geral, pelo menos a validade racional do ato que, contra os outros, assume a forma de males.
As observações científicas de Bartram sobre os animais e suas capacidades também precedem Darwin. Para ele, a verdadeira moralidade está na contraposição do que é “arbitrariamente civilizado”, como a relacionada à hierarquia de uso dos animais.
A posição filosófica de Bartram faria parte do seu livro “Travels”, mas, diferentemente do conteúdo científico trazido por ele, a princípio, receberia pouca atenção. Ainda assim, seria esse aspecto de sua literatura que, conforme Löwy e Sayre (p. 38), atrairia a atenção e simpatia de autores como Coleridge, Wordsworth, Carlyle e Chateaubriand. E no século 19, de Thoreau, que o citaria em “Walden”, e sobre quem já publicamos um artigo na Vegazeta, e Emerson.
Bartram, conforme os autores, foi na contramão de uma corrente naturalista imperialista, em que estudos sobre a natureza eram mais motivados por um interesse exploratório do que por sensibilidades ambientais. “[…] até meados do século XVIII, […] os cientistas naturais ‘compartilhavam o ponto de vista dominante’. Só então ‘soou uma nova nota na escrita científica descritiva’, uma nota mais apreciativa do mundo natural. Mesmo na última parte do século, porém, a ‘nova atitude coexistiu com a antiga, em vez de substituí-la’, e a abordagem de William Bartram se destacou como excepcional (Nash, 1982, p. 53, 55). Somente no século XIX e depois é que alguns dos temas e perspectivas expressos por Bartram se tornaram mais difundidos entre aqueles que viajavam em ambientes naturais selvagens e refletiam sobre a natureza de forma mais geral” (p. 40).
Podemos perceber a partir de Löwy e Sayre como a visão de Bartram dos seres vivos e do mundo era influenciada tanto por sua formação quanto por sua sensibilidade e capacidade de aperfeiçoar sua compreensão de outras formas de vida e do valor dessas vidas em si mesmas. Da sua formação quacre, pode-se ressaltar: “[Donald Brooks] Kelley detalha alguns aspectos-chave do credo desses pensadores quacres. Eles afirmavam que Deus era o único possuidor da terra, e o homem, apenas seu guardião ou administrador, em uma relação de proteção que deveria se estender também aos animais” (p. 43).
Portanto a crença de que o ser humano não é possuidor de nada, não devendo ser visto como quem deve dominar sobre todas as outras espécies, era também o que favorecia uma maior predisposição de Bartram em reconhecer a necessidade de uma relação respeitosa envolvendo todas as formas de vida.
Também numa associação com o pré-ambientalismo, Löwy e Sayre citam outros quacres, como os abolicionistas Anthony Benezet e John Woolman, que no século 18 foram críticos da ganância por riquezas que levou ao lixo ambiental. “Benezet defendia um modo de vida ‘compacto’ semelhante ao dos indígenas” (p. 43).
Mas a posição de Bartram, segundo os autores, não pode ser limitada à sua formação quacre nem as influências do Iluminismo. “Como aponta Larry Clarke (1986, p. 446), ‘[sua] visão da natureza como fonte imaculada e norma da virtude, e do homem primitivo como mais virtuoso do que civilizado, não faz parte da tradição quacre’, mas é ‘parte de seu apelo ao movimento romântico emergente’” (p. 43-44).
Nessa inclusão de Bartram entre os românticos é importante lembrar que o Romantismo deve ser compreendido, com base na observação de Löwy e Sayre, como uma revolta contra as condições da modernidade burguesa e a nostalgia dos valores e formas de vida pré-modernos.
Essa observação dos autores converge com a do pensador Jesús Martín-Barbero, que avalia também que o Romantismo foi uma reação política contra a fé racionalista e o utilitarismo burguês, e não somente um movimento literário, artístico. “O movimento romântico tem não poucos laços com o socialismo utópico e seu protesto contra a ausência de uma verdadeira sociedade” (2008, p. 36).
Foi o estranhamento de Bartram em relação à “sociedade civilizada” e ao capitalismo que fez com que ele buscasse outro tipo de vida: “Pois William Bartram, ao contrário de seu pai, não se encaixava na Filadélfia comercial, ou, de modo mais geral, na sociedade capitalista inicial das colônias britânicas. […] Ele preferia a natureza ‘selvagem’ e os indígenas que viviam intimamente integrados naquele meio ambiente” (p. 44).
Eles observam que o trabalho de Bartram aponta para uma consciência ecológica da interconexão e da unidade entre os seres vivos (p. 48). Ademais, Bartram traz uma percepção de que o sistema moral de outros animais é um indicativo que deveria levar a uma maior consideração humana, embora persista-se numa diferença visando a perpetuação do lugar não humano na inconsideração humana.
Esse estranhamento persistiria mesmo em outros contextos, como quando ele viajava com comerciantes, mas preferia a companhia de animais e plantas (p. 54). Bartram sentia-se não apenas deslocado, como desconfortável com a “perspectiva comercial” desses homens que influenciava também a maneira deles de perceber os animais e o mundo natural. Exemplo disso está também na queixa registrada por Bartram sobre como eles maltratavam os cavalos que viam somente como meios.
“Esse modo de viajar exibe a insensibilidade dos comerciantes ao sofrimento dos animais […] e, ao mesmo tempo, a total indiferença deles aos cenários naturais pelos quais passavam. A crueldade dos viajantes brancos na selva também se estende aos animais selvagens” (p. 54-55).
Bartram também testemunhou que os homens consideravam divertida a crueldade contra os animais – como no relato de um crocodilo atacado com tições e em quem enfiaram lanças na garganta. “Enquanto poucos eram a favor de ‘pôr fim à vida e ao sofrimento do animal com um tiro de espingarda […]’, a maioria pensou que isso os privaria cedo demais da diversão e do prazer de exercer suas várias intenções de tortura’. Só quando se cansaram do jogo é que deram um fim ao sofrimento do animal. Bartram relata um acontecimento semelhante em uma data muito posterior, quando outra companhia de comerciantes avistou uma ninhada de filhotes de lobo, perseguiu-os e capturou um deles: ‘um dos nossos o pegou pelas patas traseiras, e outro lhe bateu na cabeça com a coronha da arma – um esporte bárbaro!’” (p. 55).
Ele observou também, de acordo com Löwy e Sayre, que a indiferença em relação ao sofrimento dos animais era expressa nos mesmos homens que não se importavam com o desperdício de recursos naturais – estabelecendo também uma relação entre esses males. O que chamou atenção dos autores é que a consciência também ambiental de Bartram surge em um contexto em que havia uma crença de que “a abundância natural era aparentemente infinita”.
“Até mesmo um dos comerciantes mais velhos, com quem Bartram teve uma relação amigável, parecia compartilhar dessa atitude. Quando um grupo com o qual os dois viajavam localizou uma manada de cervos, ‘me esforcei para suplicar pela vida deles; mas meu velho amigo, embora fosse um sujeito sensato, racional e bom, não cedeu à minha filosofia’” (p. 56).
Se para Löwy e Sayre esse exemplo destaca a natureza excepcional da consciência de Bartram a respeito das questões ecológicas no contexto norte-americano do século XVIII, podemos reconhecer também que o relato dele atesta também uma consideração que não envolve somente o ecológico, mas também a própria crueldade em si contra esses animais – já que sua contrariedade veio da reprovação em matá-los, e não simplesmente por uma ponderação ecosisstêmica.
Essas passagens também evocam como o olhar desses homens era influenciado e determinado por uma percepção exploratória da natureza e dos animais. Eram comerciantes que, tendo o princípio do comércio como norteador de suas vidas, com exceções, permitiam que isso influísse e se estendesse por outros aspectos da vida. Sobre isso, também é pensável o desinteresse de Bartram em atuar no comércio, por lhe faltar também a aptidão para uma percepção que, ao mesmo tempo que poderia parecer necessária, para ele era também condenável e conflitante com seu objetivo de vida.
A partir de sua percepção de outras formas de vida, Bartram legou uma necessidade de uma ponte entre a vida humana e não humana. Segundo Löwy e Sayre, ele “expressa sua imensa atração pelos habitantes do mundo natural, até mesmo sua identificação com eles” (p. 59). A partir da percepção dos viveres indígenas que conheceu, Bartram endossou mais ainda a defesa de que os espaços naturais devem ser mantidos, não destruídos. Ninguém pode negar que não mudar nada no cenário natural é impossível; mas é possível fazer o que está ao alcance para gerar o menor impacto – o que já era defendido por Bartram, que encontra também uma identificação nesse contexto porque não consegue se adaptar “à mentalidade e ao mundo britânico norte-americano” (p. 56), portanto “busca fugir deles”.
A Bartram é atribuída uma contribuição para o inicial desenvolvimento do ambientalismo, envolvendo consciência protoecológica e necessidade de superação do antropocentrismo.
“A visão ambiental de Bartram está intimamente ligada à sua alienação e crítica à sociedade colonialista comercial na qual ele nasceu, argumentando que, apesar de algumas aparentes ambiguidades e contradições, a visão de mundo de Bartram é romântica e radical em seu cerne. Muitos fatores contextuais podem ser usados para explicar como as obras de Bartram às vezes se desviam desse núcleo. Na América Britânica do século XVIII e, a fortiori, na Filadélfia, um de seus principais centros urbanos, a pressão da ideologia dominante – utilitarista, expansionista, tecnologicamente manipuladora – era intensa. Nesse contexto, também de um período de transição altamente volátil, muitas ou talvez a maioria das produções intelectuais estavam repletas de tensões não resolvidas. Desse modo, não surpreende que – por meio do processo editorial, tanto interno quanto externo, como sugerimos – a obra publicada de Bartram tenha manifestado algumas dessas falhas. É provável que seu temperamento, aparentemente afetuoso e avesso a conflitos, também tenha desempenhado um papel, predispondo-o a buscar a conciliação de posições. […] E, mais importante, as hesitações ocasionais de Bartram não devem obscurecer a natureza e o poder de sua visão essencial” (p. 60).
Meu interesse em publicar sobre William Bartram sustenta-se principalmente no seu olhar sobre os animais no século 18 e sua relação com sua percepção do mundo e da vida. Sua posição não pode ser observada como, mesmo quando ecológica, dotada de um sentido que não considera o animal como um indivíduo a que se deve ponderar interesses próprios. Bartram não vê o animal somente por seu papel ecossistêmico – se o fizesse teria de desconsiderar todo o sofrimento animal que não cabe a essa consideração. Também precisaria se limitar a considerar somente esses animais, ignorando os outros que estão fora desse contexto, o que ele também não faz com base nos exemplos trazidos. Ademais, ele não faz distinção quando reprova a tirania humana contra os animais e reconhece neles características que mesmo hoje são ignoradas por muitas pessoas. Portanto sua identificação como romântico está também em uma necessidade de ruptura com a crença de que a vida dos animais deve ser simplesmente determinada por interesses humanos. Afinal, há nessas vidas um valor em si mesmas.
Referências
LÖWY, M; SAYRE, R. Anticapitalismo romântico e natureza: O jardim encantado. 1. ed. São Paulo: Unesp, 2021. 209 p.
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. 1. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. 356 p.
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