
A maneira como um humano convive com animais pode transformar sua percepção sobre eles? No livro “A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin”, do russo Vladimir Voinóvitch, uma das personagens de destaque, Niúra, estabelece uma relação com os animais que antagoniza o tratamento comum dado a eles a partir da exploração.
Em uma passagem, Voinóvitch narra que “para as outras pessoas a vaca era uma vaca”, reproduzindo a ideia de que se os humanos pensam na vaca como vaca é porque eles pensam na vaca como finalidade humana e seu tratamento deve ser condizente a esse fim.
Niúra é vista com estranheza porque cuidava e zelava da vaca, esfregava-a a fim de limpá-la e tirava até ciscos de seu pelo. “E falava com a vaca, a voz cheia de ternura […], e, se por acaso tivesse alguma coisa especial (um pedaço de açúcar, algum piróchki), dividia com a vaca […].”
A relação de Niúra com a vaca, que contrapõe os ditames da exploração imposta a ela, evoca uma outra consideração de interesses, porque a atitude de Niúra entra em conflito com a instrumentalização da vaca – em que o cuidado deve ser baseado no que se deseja em relação ao animal e que não é para o benefício do animal.
Mas não é somente com a vaca que Niúra estabelece uma outra relação a partir da convivência. Voinóvitch nos traz outros exemplos:
“Quanto a Borka, o porco, […], dois anos antes Niúra o recebera do Kolkhoz como bacorinho de três dias, pensando em matá-lo um dia. Mas o bacorinho se mostrou doentio e assim ficou durante muito tempo. Niúra cuidou dele […]: dava-lhe […] mamadeira, punha garrafas de água quente em sua barriga, banhava-o com sabão no cocho, enrolava-o em seu lenço […]. Niúra o fez viver, e quando Borka se tornou grande não mais conseguiu matá-lo.”
Conhecer os animais como indivíduos, de uma forma que não seja baseada no que se quer tirar deles, como o leite, a carne e os ovos, é o que transforma a visão de Niúra que, embora excepcionalista, já que envolve especificamente esses animais, pode fundamentar uma outra percepção baseada no sentido de cuidado; de que os interesses que ela reconhece como importantes para esses animais, e que ajudam a ampliar sua empatia, são inerentes a todos os animais submetidos à exploração humana.
Portanto, se temos uma experiência em que estendemos consideração a um ou alguns animais, por que não pensar também nos que não conhecemos e com quem não convivemos, mas que nem por isso deixam de ter os mesmos interesses?
Niúra estabelece um outro tipo de relação com todos os animais mais utilizados para consumo humano. Nisso subverte-se a negligenciada escala de consideração, como podemos perceber também em outra passagem do livro:
“Quando ela se sentava na varanda, lá estavam [as galinhas] a seu lado. Uma se encarapitava no ombro de Niúra, outra na cabeça, e ali ficavam sentadas sem mover uma só pena […]. Com medo de espantá-las, Niúra também não se movia.”
Niúra fazer o que faz pelos interesses dos animais é uma expressão que confronta o próprio cerne do especismo, que é baseado em colocar os interesses dos animais abaixo dos interesses humanos.
Nessa passagem, fazer o oposto não é “supervalorizar o não humano”, mas dignificar o não humano a partir de uma ação que confronta a visão comum em relação a tantos animais, que é fundamentada em um arbitrário lugar comum de subjugação – como no exemplo da galinha sobre a cabeça de Niúra.
Enfim, se há uma percepção de estranheza sobre a forma como Niúra se relaciona com esses animais é porque o que ela faz entra em conflito com uma inconsideração que se volta ao que é conveniente à perpetuação da exploração animal – como pensar os animais como fins não em si mesmos.
Referência
VOINÓVITCH, V. A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchônkin. P. 45. 1. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. 292 p.
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